O regime jurídico das praias marinhas
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A grande questão que alimenta tal debate é a da possibilidade de autorizar-se a construção de bens imóveis dentro da linha de praia, sob a alegação de que seria um incentivo ao turismo e à criação de empregos. Poderia o Poder Público autorizar a construção de casas de veraneio e outros equipamentos de uso particular em praias, bens de uso comum do povo?
Historicamente, as praias sempre foram consideradas "bens de uso comum do povo", entendendo-se como tal todos os bens inapropriáveis e inalienáveis, existentes no território do país, cuja utilização não pode ser restringida de forma alguma, sendo passível de fruição por qualquer pessoa do povo. Rosita de Sousa Santos notícia, em sua obra "Terrenos de Marinha" (Rio de Janeiro, Forense, 1985), que "o conceito de praia, trazido pelos descobridores, nos vem do Direito Romano" [01]. E conceitua: "Praia é ainda o fundo do mar, parte arenosa, que o mar cobre e descobre com o fluxo e o refluxo das águas". E cita ainda Clóvis Beviláqua, que transmite a definição das institutas: "É o terreno que o mar cobre nas suas maiores enchentes..." [02].
Clóvis Beviláqua, citado ainda por Rosita de Sousa Santos, ensinava ainda que "as leis romanas destacavam as praias como coisas comuns a todos (res communs ominium), permitindo, aliás, que ahi se fizessem construcções, mas além da praia, começavam as terras sem a particularização da faixa intermédia existente no direito pátrio" [03]. Beviláqua [04] informava ainda que a Ordem Regia de 1 de setembro de 1726, do Reino de Portugal, proibia expressamente que alguém construísse nas praias, o demonstra que a natureza jurídica desse bem público teve, certamente, origem no Direito Português. Nesse sentido, cite-se a Ordem Régia de 10 de setembro de 1726 e o Aviso, de 10 de novembro de 1818, que declara que "15 braças da linha d''água do mar, e pela sua borda, são reservadas para servidão pública" [05].
No direito brasileiro, o Decreto n. 6.617, de 29 de agosto de 1907, já dispunha sobre os terrenos de marinha e especificamente sobre a utilização das praias, proibindo, claramente, construções nos Terrenos de Marinha e, por conseguinte, nas praias [06].
O Decreto n. 19.197, de 31 de outubro de 1923, previa, em seu artigo 207, que "é proibido fazer qualquer construções, aterros e obras sobre o mar, rios e seus braços, sobre os terrenos de marinha aforados ou não e nos reservados para a servidão pública, sem audiência da Capitania, que só a concederá depois de verificar se tais obras não prejudicam os portos e sua navegação, rios e lagoas, ou obras projetadas pelo Governo, nem danificam os estabelecimentos da União".
Vê-se, pois, que a vocação das "praias" para o uso comum do povo não é recente, e decorreu de um processo de construção histórica do instituto, notadamente sob influência do Direito Português e também das condições geográficas do litoral brasileiro, em face de sua grande extensão. Trata-se, pois, de fronteira natural do País, e tal como toda e qualquer zona de fronteira é região de segurança do Estado. Como nos diz Roberto Santana de Menezes, "As marinhas sempre tiveram um tratamento diferenciado das demais terras do Estado, em face da sua localização estratégica, uma interface com o mar" [07].
Hoje a Constituição Federal dispõe, no artigo 20, inciso VII, que são bens da União os terrenos de marinha e seus acrescidos, e no inciso IV, as praias marítimas, de modo que não há dúvida quanto à natureza jurídica das praias no atual regime constitucional: são bens titularizados pela União, mas que, em verdade, são de fruição universal, e não restrita, bens de uso comum do povo.
Tal regime, como já visto, se extrai do fato de as praias serem "fronteiras naturais" do país, e, nessa condição, devem ter tratamento diferenciado das demais terras públicas, e mesmo de outros bens de uso comum do povo, como ruas, avenidas e praças. Devem ser tratadas como "faixa de fronteira", que, no §2º do citado artigo, são definidas como "a faixa de até cento e cinqüenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, designada como faixa de fronteira, é considerada como fundamental para a defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei".
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O artigo 10 do aludido diploma legal estabelece que "as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse da segurança nacional ou incluídos em áreas protegidos por legislação específica". E o § 1º é taxativo na proibição de urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na Zona Costeira que impeça ou "dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo". Depreende-se desses dispositivos que a praia pode ser utilizada de três formas: a) uso comum do povo, ou seja, fruição geral da população, principalmente em atividades de lazer; b) para fins de segurança nacional; c) área protegida por legislação específica. Nesse último caso, trata-se de área de proteção ambiental instituída por lei, com vistas à proteção dos recursos naturais ali existentes, de forma a evitar danos ambientais nesses ecossistemas.
Joel de Meneses Niebuhr, em interessante artigo sobre o tema, assevera que "a praia é de dimensão variável: há faixas de praias, por exemplo, de 1 (um ) metro, 10 (dez) metros ou de 60 (sessenta) metros, dependendo da largura de faixa de material detrítico" [09]. "Nesse sentido, os 33 (trinta e três) metros a partir da linha da preamar-média de 1831, que constituem o terreno da marinha, podem ultrapassar a faixa de praia, bem como a faixa de praia pode ultrapassá-los, ou mesmo pode haver terreno de marinha em locais em que não haja praia" [10].
A Lei n. 7.661/88 foi regulamentada pelo Decreto n. 5.300, de 07 de dezembro de 2004, que em seu artigo 21 repete o conceito de praias constante da Lei.
Convém destacar, do Decreto, as disposições constantes do §1º do artigo 21, o qual estabelece que a Administração Municipal deverá assegurar, dentro do planejamento urbano, o livre acesso às praias pela população, e deverá, para tanto, adotar como critérios: I – nas áreas já ocupadas por loteamentos à beira mar, sem acesso à praia, o Poder Público Municipal, em conjunto com o órgão ambiental, definirá as áreas de servidão de passagem, responsabilizando-se por sua implantação, no prazo máximo de dois anos, contados a partir da publicação deste Decreto; e II – nas áreas a serem loteadas, o projeto de loteamento identificará os locais de acesso à praia, conforme competências dispostas nos instrumentos normativos estaduais e municipais; III - nos imóveis rurais, condomínios e quaisquer outros empreendimentos à beira mar, o proprietário será notificado pelo poder Público Municipal, para prover os acessos à praia, com prazo determinado, segundo condições estabelecidas em conjunto com o órgão ambiental.
Diante de tais disposições, surge a seguinte dúvida: teria o Poder Público Federal autorizado que os Municípios permitissem a ocupação de praias por loteamentos particulares? A princípio, nos parece que sim, mas trata-se, obviamente, de texto que carece de técnica legislativa, e deve ser interpretado à luz da Constituição Federal vigente e da Legislação que trata da matéria. Vejamos:
O § 4º da Constituição Federal dispõe que "a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais".Da conjugação desses dispositivos, e fazendo-se uma interpretação lógico-sistemática, conclui-se que as modalidades de acesso e uso das praias não podem implicar em "urbanização" ou qualquer forma que dificulte o acesso àquele bem, entre os quais se pode inserir, sem sombra de dúvidas, loteamentos particulares. O que a Lei prevê é a possibilidade de utilização da praia para os fins a que se destina, especialmente para segurança nacional, defesa do meio-ambiente e como atração turística, não se permitindo qualquer construção que impeça ou dificulte o acesso à praia.
O § 1º da Lei n. 7.661/88 estabelece que "não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na zona costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput". E o § 2º acrescenta que "a regulamentação desta lei determinará as características e as modalidades de acesso que garantam o uso público das praias e do mar".
Conclui-se ainda que eventuais "loteamentos" devem ser autorizados somente em terrenos próximos das praias, e não na praia em si, sob pena de ter-se o esvaziamento da legislação protetiva, permitindo-se o absurdo de construir-se sobre a praia, o que implicaria, inevitavelmente, em restrição ao seu livre acesso pela população em geral. Seria a privatização de um bem público federal, o que, é, certamente, inconstitucional.
Em suma: pequenos equipamentos públicos ou particulares, necessários à própria utilização da praia, como quiosques e trailers removíveis, pequenas barracas, clubes náuticos e outros podem ser instalados na área de praia marítima, desde que tenham autorização dos órgãos Municipais e Federais de Meio-Ambiente, bem como do Serviço de Patrimônio da União. Casas de veraneio, mansões e outros bens imóveis de utilização particular não se enquadram nesse permissivo, e devem ser fiscalizadas e prontamente rechaçadas pelo poder público.
É de se ressalvar que os órgãos de proteção ambiental, assim como o Serviço do Patrimônio da União, possuem poderes típicos de Poder de Polícia para a proteção das praias, podendo, de forma auto-executória, adotar todas as medidas necessárias ao cumprimento desse mister, como aplicar multa e embargar obras, podendo chegar até a demolição do imóvel construído irregularmente, desde que previamente tenha submetido o ocupante a processo administrativo em que se lhe tenha assegurado o contraditório e a ampla-defesa.
A praia é, portanto, bem de uso comum do povo, de fruição geral, e nessa condição, mesmo com todas as alterações legislativas surgidas nos últimos anos, permanece na condição de bem indisponível da União, cuja utilização por particular somente poderia se de forma excepcional, e desde que se garanta o livre acesso à população, evitando-se com isso a utilização mesquinha e privada de um bem público dos mais relevantes para o bem estar da coletividade, seja sob o aspecto ecológico, seja sob o aspecto da segurança nacional, ou até mesmo pelo lazer que proporciona à todos, de forma indistinta e geral.
Referências Bibliográficas:
MENEZES, Roberto Santana de. Regime Patrimonial dos Terrenos de Marinha. Jus Navigandi, Teresina, ano 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5855.NIEBUHR, Joel de Menezes. Terrenos de Marinha: aspectos destacados. Artigo publicado em 24.08.2004, na Revista de Doutrina da 4ª Região, publicada pela Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região.
SANTOS, Rosita de Sousa. Terrenos de Marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985.
Notas
- SANTOS, Rosita de Sousa. Terrenos de Marinha. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 03.
- Ob. Cit., p. 04.
- Idem.
- Idem.
- Ob.Cit. p. 05.
- Ob. Cit. p. 36.
- MENEZES, Roberto Santana de. Regime Patrimonial dos Terrenos de Marinha. Jus Navigandi, Teresina, ano 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5855.
- Idem.
- NIEBUHR, Joel de Menezes. Terrenos de Marinha: aspectos destacados. Artigo publicado em 24.08.2004, na Revista de Doutrina da 4ª Região, publicada pela Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região
- Idem..
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