Potosi: O Inferno Mineiro na terra da prata
Ela já foi tão populosa quanto Madri e Paris; e na primeira
metade do século 17, metade da prata que circulava no mundo saía de suas
montanhas. Mas hoje, a cidade de Potosi está no estado mais miserável
da Bolívia. Do passado de riqueza proporcionado pelo minério, restou o
flagelo da silicose, a doença que mata os mineradores aos 45 anos de
idade
Marcel Vincenti
A gravura ilustra o trabalho sacrificado e arriscado na Potosi do século 18
Carmelo Ticona é um boliviano de 28 anos, e sabe que lhe resta pouco tempo de vida. Morador da cidade de Potosi, família pobre, ele não teve escolha: adotou, ainda adolescente, a profissão que, no fim das contas, era seu destino certo e inadiável, a mineração.
Apesar de seguir uma tradição familiar, a busca de riqueza não é o seu objetivo; a falta de oportunidades é o que está em pauta. Mas Carmelo tem consciência do que resulta lutar, dentro das minas, pela sobrevivência: uma morte prematura. "Sei que posso morrer a qualquer momento, em algum acidente ou com a [doença pulmonar] silicose. É o destino do mineiro. Nós não vivemos muito", diz, resignado.
Tanto na ocupação como na lucidez, Carmelo não está sozinho. Ele integra uma legião de, aproximadamente, 13 mil mineiros, que, hoje, vasculham as entranhas da montanha-símbolo de Potosi – e também da Bolívia. Eles trabalham dentro do Cerro Rico. Foi aos pés desse enorme cone de pedra que, em 1545, o pastor de lhamas Diego Huallpa viu aflorar, à luz da fogueira, uma pequena quantidade de terra prateada. Não demorou para que os espanhóis, na condição de colonizadores, começassem a ordenar diversas escavações. A extensão das reservas argentíferas que eles encontraram pode ser medido pela quantidade de prata que extraíram. Segundo documentos da Casa da Moeda de Potosi, entre 1545 e 1825 – ano em que a Bolívia conquistou sua independência -, tirou-se da montanha aproximadamente 35 mil toneladas do nobre metal.
Artefatos confecc ionados com a prata de Potossi
Potosi tornou-se, ainda no século 16, uma das urbes mais ricas e cobiçadas da colônia; em 1640, época em que metade da prata comercializada no mundo saía do Cerro Rico, sua população de 160 mil almas rivalizava com a de capitais como Paris e Madri. Paróquias, havia 14. Conventos, cinco. Prostitutas, mais de 120. E, reza a lenda, até as ruas da cidade estavam banhadas com argento. A Coroa Espanhola e seus credores exultavam. Mas a opulência – e a perspectiva de uma riqueza sem fim -, trouxe também a degradação da vida dos indígenas.
Coube ao vice-rei Francisco de Toledo instaurar em Potosi, em 1575, o sistema de "mitas", que obrigava boa parte dos nativos locais a labutar dentro das minas, em situação análoga à da escravidão. A eles juntaram-se punhados de negros, trazidos de Angola e Cabo Verde. E o trabalho, como se pode imaginar, era árduo: equipados com picaretas, velas de sebo e quase nenhum acessório de segurança, homens adultos, adolescentes e crianças se embrenhavam nos túneis do Cerro Rico para, durante horas a fio, remover e transportar o minério de prata rumo à cidade; dali ele seguiria para o porto de Arica, no Pacífico – de onde seria, finalmente, exportado para a Europa.
O "Tio", personagem da cultura de Cerro Rico, preside o ambiente contaminado do interior da mina
Desmoronamentos e doenças pulmonares causadas pela poeira de sílica – composto venenoso que flutuava no ar viciado das minas – abriam ao destino dessas pessoas duas vias: a de uma morte súbita, ou a de um definhamento longo e doloroso. E ninguém podia se rebelar: a recusa ao trabalho mineiro era punida com a pena capital
.Em seu "As Veias Abertas da América Latina", o historiador uruguaio Eduardo Galeano calcula que, entre os séculos 16 e 19, cerca de oito milhões de pessoas tenham falecido em decorrência do trabalho no Cerro Rico. A prata praticamente acabou. Mas, longe de assustar a cultura mineira, a exploração da combalida montanha ainda segue viva – e letal.
Embora tenha sido, entre os séculos 16 e 17, uma das principais fontes de riqueza da Coroa Espanhola na América, Potosi é hoje a capital do Estado mais miserável da Bolívia – que, por sua vez, é o país mais pobre da América do Sul. Com a prata exaurida, carente de indústrias e situado a quatro mil metros acima do nível do mar, a única coisa que o lugar ostenta atualmente são dados estatísticos alarmantes.
A máscara ajuda a evitar a absorção de silica, mas nem sempre representa uma proteção completa
Do Cerro Rico o que mais se tira agora é chumbo, zinco, estanho e prata de baixa qualidade – num esquema de cooperativa
Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas boliviano, 36% da população do Estado de Potosi vive em condição de indigência. A taxa de mortalidade infantil é de 59 óbitos para cada mil nascimentos (a média brasileira é de 20 mortes para cada mil nascimentos), e 28% dos potosinos com mais de 15 anos são analfabetos.
Mesmo carente de seu metal mais precioso, ainda hoje o mercado de extração de minérios é responsável por 39% do PIB potosino. Para que se tenha uma ideia: o setor industrial representa apenas 3,5% do PIB local; e a agricultura, uns 10%. Do Cerro Rico o que mais se tira agora é chumbo, zinco, estanho e prata de baixa qualidade. Os mineiros trabalham em esquema de cooperativa (são mais de 40, operando as 180 minas ativas da montanha), e vendem os minérios para as 31 refinarias da cidade. A maioria desses trabalhadores assegura: não consegue receber mais de dois mil bolivianos (cerca de 500 reais) por mês.
A maioria dos mineiros de Potosi tem expectativa de vida média de apenas 45 anos
Ao contrário do salário, o custo de tal empreitada é alto: de acordo com Gualberto Astorga, pneumologista da Caixa Nacional de Saúde – hospital de Potosi que atende a maioria dos mineiros doentes -, a expectativa de vida de um trabalhador do Cerro Rico é de apenas 45 anos (em toda a Bolívia, as pessoas vivem, em média, 66 anos, e, no Brasil, 73 anos). A principal razão: a silicose, doença causada pela saturação da poeira de sílica nos pulmões dos mineiros. A moléstia é incurável e, se não for tratada, faz a vítima definhar até impossibilitá-la de respirar por suas próprias forças, matando-a.
"Em geral, eles [os mineiros] apresentam os primeiros sintomas de silicose dez anos depois de terem começado a trabalhar na mina", diz Astorga. "Se, a partir daí, mudassem de emprego, conseguiriam preservar a saúde. Mas o problema é que eles não têm outra coisa a fazer, e se conformam. As esposas nem choram quando, mais tarde, damos a notícia do óbito".
Potosi venera Pacha Mama, a divindade indígena Mãe Terra
Dentro da mina, o trabalho dos operários transcorre sob permanente estado de tensão
Este mineiro usa um simples pedaço de pano à guiza de máscara – proteção, é óbvio, insuficiente
À explicação do médico junta-se uma sinfonia de tosses secas que ecoa pelos corredores da Caixa Nacional. Com o cabide de soro na mão, pacientes caminham vagarosamente pelos corredores, como em um fluxo melancólico. Domingo Ari, 48 anos, mineiro desde os 15, é um deles. Sentado sob o sol que banha o pátio do hospital, o rosto cadavérico e as mãos, sem força, largadas sobre os joelhos, ele conta que, aos 10 anos, viu seu pai, também escavador, morrer de silicose. "Dois dos meus quatro filhos trabalham nas minas, e agora sou eu quem está doente", diz, entre um espasmo e outro.
Para o médico Juan Carlos Oporto, do Centro de Saúde Cerro de Prata, que presta atendimento regular e os primeiros socorros a cinco mil trabalhadores do Cerro Rico, a cultura mineira é "autodestrutiva". "Há muita ignorância entre esses homens. Eles trabalham em demasia, bebem muito e não estão preocupados com o futuro. Dos meus pacientes, pelo menos 1.500 já têm silicose", contabiliza.
Outras estimativas de Oporto: ele assina, em média, 12 diagnósticos de silicose por mês; e, todos os anos, perde ao menos 25 pacientes mineiros, que vão à óbito em decorrência do trabalho na mina. Mas há outros dados alarmantes no setor: "20% das pessoas que atendo por mês na clínica (ou seja, aproximadamente 1.000) são menores de idade, alguns com menos de 15 anos", revela o médico.
Segundo ele, o trabalho no Cerro Rico acarreta também uma grande incidência de "doenças de pele, desnutrição, bronquite e problemas nervosos". Isso para não se falar nos acidentes de trabalho. Oporto diz receber pelo menos três pessoas acidentadas diariamente em seu hospital. "É, sem dúvida, uma das piores maneiras de se levar a vida", ele conclui.
Bananas de dinamites usadas no interior de Cerro Rico
As entranhas do Cerro Rico são, talvez, o cenário mais próximo do inferno a ser visto na Terra. Trata-se de um labirinto de corredores estreitos, abafados, úmidos, escuros e lotados de poeira de sílica, que se conectam uns aos outros por meio de buracos e escadas precárias. Ao visitante de primeira viagem, o lugar causa repulsa. Nos trabalhadores, parece injetar o veneno do conformismo.
Em seu interior circulam homens de feições cansadas e olhares vazios, a terra grudada no suor da face, o caminho iluminado pela luz parca dos capacetes. Eles empurram carretas lotadas de pedregulhos, agridem a rocha com suas picaretas e, de vez em quando, ouvem um " bum!", que faz a atmosfera tremer – a explosão de uma carga de dinamite. Não há nada de extraordinário nisso: em Potosi, o explosivo é comprado na rua, sem qualquer restrição. Uma banana de dinamite custa, em média, o equivalente a 5 reais.
Muitos mineiros trabalham em turnos de 24 horas e têm como único alimento as folhas de coca – que, armazenadas por longo tempo nas bochechas, são capazes de diminuir a fome. Tal qual formigas, eles circulam sem parar entre os diversos níveis da mina, até uma profundidade de 1.500 metros. Isso os submete a variações bruscas de clima. Nos corredores bafejados por correntes de ar, a temperatura é de 10 °C. Nas câmaras de trabalho, onde os homens manejam pás e picaretas incessantemente, o calor passa dos 40 °C.
O ar, por sua vez, é turvo, carregado de um rançoso odor metálico. Nesse ambiente, a boca seca, a garganta fica irritada, os olhos ardem. A uma altitude de quatro mil metros, os mineiros têm duas opções: usar máscaras de proteção contra a sílica venenosa, ou abandoná-las e desfrutar a sensação de respirar melhor. Muitos optam pela segunda alternativa. E, dessa forma, tentam seguir a vida.
O mineiro é jovem – menos de 40 anos – mas sua pele denota o desgaste físico que o trabalho acarreta
Sentado ao lado de seus dois irmãos, de 22 e 18 anos, Carmelo Ticona termina mais uma garrafa de cerveja morna. O rosto ossudo, de nariz adunco e olhos avermelhados, exibe uma pele morena, áspera como a terra que a reveste. Na dentadura incompleta ele masca, compulsivamente, resíduos de folhas de coca. Seu universo é a vila de Pailaviri, onde tem sua casa, cheia de construções pobres, erguida ao lado da entrada de uma das minas do Cerro Rico.
É época da festa conhecida como Wilancha. Reunidos em grupos de 10 a 20 pessoas, cerca de 200 mineiros e familiares se preparam para o grande momento do dia: o derramamento de sangue. Cada grupo carrega entre duas e cinco lhamas. A bebedeira é enorme: muita cerveja, singani (aguardente de uva) e Ceibo (bebida com teor alcoólico de 96%).
As crianças brincam, enquanto as mulheres começam a acender fogueiras. Já embriagados, Carmelo e seus companheiros saltam sobre um dos animais (que pesam cerca de 200 kg), sujeitam-no no chão e, com uma faca de cozinha, cortam seu pescoço. O sangue que jorra das artérias abertas é recolhido em pratos de metal e jogado na boca da mina, na parede das casas e, em alguns casos, nos rostos das pessoas. A carne, mais tarde, virará churrasco.
O sacrifício é uma forma de venerar Pacha Mama, a divindade indígena Mãe Terra, e, acima de tudo, apaziguar a sede de uma das figuras mais respeitadas pela cultura mineira: o "Tio" – como é conhecido o diabo que habita o interior do Cerro Rico. "Somos católicos", diz Juan, irmão mais novo de Carmelo. "Mas, dentro da mina, para nós Deus não existe. Por isso homenageamos o Tio, para que ele nos proteja de acidentes e da morte".
Ritual da matança de lhama para a festa conhecida como Wilancha
A figura de tal entidade é, de fato, assustadora. Dezenas de estátuas suas adornam o interior da mina, e seguem o mesmo padrão: feitas de barro no tamanho de um ser humano, elas mostram o "Tio" sentado em um trono, exibindo um falo avantajado e, na cabeça, tétricos chifres de cabra. O rosto tem feição raivosa. Aos pés das imagens os trabalhadores do Cerro Rico deixam folhas de coca, bebidas alcoólicas, cigarros e fotos de mulheres nuas.
Corolário da fé cristã trazida pelos espanhóis à América, a veneração dos mineiros à figura do diabo facilita uma conclusão esclarecedora: a de que, com a alma vendida à prata, só resta a esses homens conformar-se com a vida no inferno. A Bolívia, conforme escreveu Eduardo Galeano, é "vítima de sua própria riqueza".
Cientistas avançam rumo à cura da silicose
A 2 de outubro último, cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro apresentaram os resultados de uma pesquisa que pode abrir caminho para a cura da silicose.
Em um experimento inédito no mundo, eles injetaram células-tronco no pulmão de cinco pessoas acometidas pela doença, e puderam observar: durante certo espaço de tempo, essa intervenção conteve a inflamação nas vias respiratórias dos pacientes.
A pesquisa foi apresentada no 5º Congresso Brasileiro de Células Tronco, realizado na cidade sulina de Gramado. Em entrevista à imprensa, o coordenador do projeto, Marcelo Morales, disse que o método é seguro, mas ainda é cedo para afirmar que esse tipo de tratamento levará à cura da moléstia.
As células-tronco foram retiradas das médulas-ósseas dos próprios pacientes. De acordo com os cientistas, é delas que pode sair a cura para a enfermidade que flagela os mineiros bolivianos – um castigo que não atinge apenas essa população. No Brasil, cerca de seis milhões de brasileiros estão, atualmente, expostos ao pó de sílica, por força de suas atividades profissionais. Não há previsão, porém, para que um eventual tratamento baseado em células-tronco chegue à rede de saúde pública.(M.V.)
Um comparativo entre o pulmão íntegro ( à dir.) e o mesmo órgão afetado pela silicose
Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/
Marcel Vincenti
A gravura ilustra o trabalho sacrificado e arriscado na Potosi do século 18
Carmelo Ticona é um boliviano de 28 anos, e sabe que lhe resta pouco tempo de vida. Morador da cidade de Potosi, família pobre, ele não teve escolha: adotou, ainda adolescente, a profissão que, no fim das contas, era seu destino certo e inadiável, a mineração.
Apesar de seguir uma tradição familiar, a busca de riqueza não é o seu objetivo; a falta de oportunidades é o que está em pauta. Mas Carmelo tem consciência do que resulta lutar, dentro das minas, pela sobrevivência: uma morte prematura. "Sei que posso morrer a qualquer momento, em algum acidente ou com a [doença pulmonar] silicose. É o destino do mineiro. Nós não vivemos muito", diz, resignado.
Tanto na ocupação como na lucidez, Carmelo não está sozinho. Ele integra uma legião de, aproximadamente, 13 mil mineiros, que, hoje, vasculham as entranhas da montanha-símbolo de Potosi – e também da Bolívia. Eles trabalham dentro do Cerro Rico. Foi aos pés desse enorme cone de pedra que, em 1545, o pastor de lhamas Diego Huallpa viu aflorar, à luz da fogueira, uma pequena quantidade de terra prateada. Não demorou para que os espanhóis, na condição de colonizadores, começassem a ordenar diversas escavações. A extensão das reservas argentíferas que eles encontraram pode ser medido pela quantidade de prata que extraíram. Segundo documentos da Casa da Moeda de Potosi, entre 1545 e 1825 – ano em que a Bolívia conquistou sua independência -, tirou-se da montanha aproximadamente 35 mil toneladas do nobre metal.
Artefatos confecc ionados com a prata de Potossi
Potosi tornou-se, ainda no século 16, uma das urbes mais ricas e cobiçadas da colônia; em 1640, época em que metade da prata comercializada no mundo saía do Cerro Rico, sua população de 160 mil almas rivalizava com a de capitais como Paris e Madri. Paróquias, havia 14. Conventos, cinco. Prostitutas, mais de 120. E, reza a lenda, até as ruas da cidade estavam banhadas com argento. A Coroa Espanhola e seus credores exultavam. Mas a opulência – e a perspectiva de uma riqueza sem fim -, trouxe também a degradação da vida dos indígenas.
Coube ao vice-rei Francisco de Toledo instaurar em Potosi, em 1575, o sistema de "mitas", que obrigava boa parte dos nativos locais a labutar dentro das minas, em situação análoga à da escravidão. A eles juntaram-se punhados de negros, trazidos de Angola e Cabo Verde. E o trabalho, como se pode imaginar, era árduo: equipados com picaretas, velas de sebo e quase nenhum acessório de segurança, homens adultos, adolescentes e crianças se embrenhavam nos túneis do Cerro Rico para, durante horas a fio, remover e transportar o minério de prata rumo à cidade; dali ele seguiria para o porto de Arica, no Pacífico – de onde seria, finalmente, exportado para a Europa.
O "Tio", personagem da cultura de Cerro Rico, preside o ambiente contaminado do interior da mina
Desmoronamentos e doenças pulmonares causadas pela poeira de sílica – composto venenoso que flutuava no ar viciado das minas – abriam ao destino dessas pessoas duas vias: a de uma morte súbita, ou a de um definhamento longo e doloroso. E ninguém podia se rebelar: a recusa ao trabalho mineiro era punida com a pena capital
.Em seu "As Veias Abertas da América Latina", o historiador uruguaio Eduardo Galeano calcula que, entre os séculos 16 e 19, cerca de oito milhões de pessoas tenham falecido em decorrência do trabalho no Cerro Rico. A prata praticamente acabou. Mas, longe de assustar a cultura mineira, a exploração da combalida montanha ainda segue viva – e letal.
Embora tenha sido, entre os séculos 16 e 17, uma das principais fontes de riqueza da Coroa Espanhola na América, Potosi é hoje a capital do Estado mais miserável da Bolívia – que, por sua vez, é o país mais pobre da América do Sul. Com a prata exaurida, carente de indústrias e situado a quatro mil metros acima do nível do mar, a única coisa que o lugar ostenta atualmente são dados estatísticos alarmantes.
A máscara ajuda a evitar a absorção de silica, mas nem sempre representa uma proteção completa
Do Cerro Rico o que mais se tira agora é chumbo, zinco, estanho e prata de baixa qualidade – num esquema de cooperativa
Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas boliviano, 36% da população do Estado de Potosi vive em condição de indigência. A taxa de mortalidade infantil é de 59 óbitos para cada mil nascimentos (a média brasileira é de 20 mortes para cada mil nascimentos), e 28% dos potosinos com mais de 15 anos são analfabetos.
Mesmo carente de seu metal mais precioso, ainda hoje o mercado de extração de minérios é responsável por 39% do PIB potosino. Para que se tenha uma ideia: o setor industrial representa apenas 3,5% do PIB local; e a agricultura, uns 10%. Do Cerro Rico o que mais se tira agora é chumbo, zinco, estanho e prata de baixa qualidade. Os mineiros trabalham em esquema de cooperativa (são mais de 40, operando as 180 minas ativas da montanha), e vendem os minérios para as 31 refinarias da cidade. A maioria desses trabalhadores assegura: não consegue receber mais de dois mil bolivianos (cerca de 500 reais) por mês.
A maioria dos mineiros de Potosi tem expectativa de vida média de apenas 45 anos
Ao contrário do salário, o custo de tal empreitada é alto: de acordo com Gualberto Astorga, pneumologista da Caixa Nacional de Saúde – hospital de Potosi que atende a maioria dos mineiros doentes -, a expectativa de vida de um trabalhador do Cerro Rico é de apenas 45 anos (em toda a Bolívia, as pessoas vivem, em média, 66 anos, e, no Brasil, 73 anos). A principal razão: a silicose, doença causada pela saturação da poeira de sílica nos pulmões dos mineiros. A moléstia é incurável e, se não for tratada, faz a vítima definhar até impossibilitá-la de respirar por suas próprias forças, matando-a.
"Em geral, eles [os mineiros] apresentam os primeiros sintomas de silicose dez anos depois de terem começado a trabalhar na mina", diz Astorga. "Se, a partir daí, mudassem de emprego, conseguiriam preservar a saúde. Mas o problema é que eles não têm outra coisa a fazer, e se conformam. As esposas nem choram quando, mais tarde, damos a notícia do óbito".
Potosi venera Pacha Mama, a divindade indígena Mãe Terra
Dentro da mina, o trabalho dos operários transcorre sob permanente estado de tensão
Este mineiro usa um simples pedaço de pano à guiza de máscara – proteção, é óbvio, insuficiente
À explicação do médico junta-se uma sinfonia de tosses secas que ecoa pelos corredores da Caixa Nacional. Com o cabide de soro na mão, pacientes caminham vagarosamente pelos corredores, como em um fluxo melancólico. Domingo Ari, 48 anos, mineiro desde os 15, é um deles. Sentado sob o sol que banha o pátio do hospital, o rosto cadavérico e as mãos, sem força, largadas sobre os joelhos, ele conta que, aos 10 anos, viu seu pai, também escavador, morrer de silicose. "Dois dos meus quatro filhos trabalham nas minas, e agora sou eu quem está doente", diz, entre um espasmo e outro.
Para o médico Juan Carlos Oporto, do Centro de Saúde Cerro de Prata, que presta atendimento regular e os primeiros socorros a cinco mil trabalhadores do Cerro Rico, a cultura mineira é "autodestrutiva". "Há muita ignorância entre esses homens. Eles trabalham em demasia, bebem muito e não estão preocupados com o futuro. Dos meus pacientes, pelo menos 1.500 já têm silicose", contabiliza.
Outras estimativas de Oporto: ele assina, em média, 12 diagnósticos de silicose por mês; e, todos os anos, perde ao menos 25 pacientes mineiros, que vão à óbito em decorrência do trabalho na mina. Mas há outros dados alarmantes no setor: "20% das pessoas que atendo por mês na clínica (ou seja, aproximadamente 1.000) são menores de idade, alguns com menos de 15 anos", revela o médico.
Segundo ele, o trabalho no Cerro Rico acarreta também uma grande incidência de "doenças de pele, desnutrição, bronquite e problemas nervosos". Isso para não se falar nos acidentes de trabalho. Oporto diz receber pelo menos três pessoas acidentadas diariamente em seu hospital. "É, sem dúvida, uma das piores maneiras de se levar a vida", ele conclui.
Bananas de dinamites usadas no interior de Cerro Rico
As entranhas do Cerro Rico são, talvez, o cenário mais próximo do inferno a ser visto na Terra. Trata-se de um labirinto de corredores estreitos, abafados, úmidos, escuros e lotados de poeira de sílica, que se conectam uns aos outros por meio de buracos e escadas precárias. Ao visitante de primeira viagem, o lugar causa repulsa. Nos trabalhadores, parece injetar o veneno do conformismo.
Em seu interior circulam homens de feições cansadas e olhares vazios, a terra grudada no suor da face, o caminho iluminado pela luz parca dos capacetes. Eles empurram carretas lotadas de pedregulhos, agridem a rocha com suas picaretas e, de vez em quando, ouvem um " bum!", que faz a atmosfera tremer – a explosão de uma carga de dinamite. Não há nada de extraordinário nisso: em Potosi, o explosivo é comprado na rua, sem qualquer restrição. Uma banana de dinamite custa, em média, o equivalente a 5 reais.
Muitos mineiros trabalham em turnos de 24 horas e têm como único alimento as folhas de coca – que, armazenadas por longo tempo nas bochechas, são capazes de diminuir a fome. Tal qual formigas, eles circulam sem parar entre os diversos níveis da mina, até uma profundidade de 1.500 metros. Isso os submete a variações bruscas de clima. Nos corredores bafejados por correntes de ar, a temperatura é de 10 °C. Nas câmaras de trabalho, onde os homens manejam pás e picaretas incessantemente, o calor passa dos 40 °C.
O ar, por sua vez, é turvo, carregado de um rançoso odor metálico. Nesse ambiente, a boca seca, a garganta fica irritada, os olhos ardem. A uma altitude de quatro mil metros, os mineiros têm duas opções: usar máscaras de proteção contra a sílica venenosa, ou abandoná-las e desfrutar a sensação de respirar melhor. Muitos optam pela segunda alternativa. E, dessa forma, tentam seguir a vida.
O mineiro é jovem – menos de 40 anos – mas sua pele denota o desgaste físico que o trabalho acarreta
Sentado ao lado de seus dois irmãos, de 22 e 18 anos, Carmelo Ticona termina mais uma garrafa de cerveja morna. O rosto ossudo, de nariz adunco e olhos avermelhados, exibe uma pele morena, áspera como a terra que a reveste. Na dentadura incompleta ele masca, compulsivamente, resíduos de folhas de coca. Seu universo é a vila de Pailaviri, onde tem sua casa, cheia de construções pobres, erguida ao lado da entrada de uma das minas do Cerro Rico.
É época da festa conhecida como Wilancha. Reunidos em grupos de 10 a 20 pessoas, cerca de 200 mineiros e familiares se preparam para o grande momento do dia: o derramamento de sangue. Cada grupo carrega entre duas e cinco lhamas. A bebedeira é enorme: muita cerveja, singani (aguardente de uva) e Ceibo (bebida com teor alcoólico de 96%).
As crianças brincam, enquanto as mulheres começam a acender fogueiras. Já embriagados, Carmelo e seus companheiros saltam sobre um dos animais (que pesam cerca de 200 kg), sujeitam-no no chão e, com uma faca de cozinha, cortam seu pescoço. O sangue que jorra das artérias abertas é recolhido em pratos de metal e jogado na boca da mina, na parede das casas e, em alguns casos, nos rostos das pessoas. A carne, mais tarde, virará churrasco.
O sacrifício é uma forma de venerar Pacha Mama, a divindade indígena Mãe Terra, e, acima de tudo, apaziguar a sede de uma das figuras mais respeitadas pela cultura mineira: o "Tio" – como é conhecido o diabo que habita o interior do Cerro Rico. "Somos católicos", diz Juan, irmão mais novo de Carmelo. "Mas, dentro da mina, para nós Deus não existe. Por isso homenageamos o Tio, para que ele nos proteja de acidentes e da morte".
Ritual da matança de lhama para a festa conhecida como Wilancha
A figura de tal entidade é, de fato, assustadora. Dezenas de estátuas suas adornam o interior da mina, e seguem o mesmo padrão: feitas de barro no tamanho de um ser humano, elas mostram o "Tio" sentado em um trono, exibindo um falo avantajado e, na cabeça, tétricos chifres de cabra. O rosto tem feição raivosa. Aos pés das imagens os trabalhadores do Cerro Rico deixam folhas de coca, bebidas alcoólicas, cigarros e fotos de mulheres nuas.
Corolário da fé cristã trazida pelos espanhóis à América, a veneração dos mineiros à figura do diabo facilita uma conclusão esclarecedora: a de que, com a alma vendida à prata, só resta a esses homens conformar-se com a vida no inferno. A Bolívia, conforme escreveu Eduardo Galeano, é "vítima de sua própria riqueza".
Cientistas avançam rumo à cura da silicose
A 2 de outubro último, cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro apresentaram os resultados de uma pesquisa que pode abrir caminho para a cura da silicose.
Em um experimento inédito no mundo, eles injetaram células-tronco no pulmão de cinco pessoas acometidas pela doença, e puderam observar: durante certo espaço de tempo, essa intervenção conteve a inflamação nas vias respiratórias dos pacientes.
A pesquisa foi apresentada no 5º Congresso Brasileiro de Células Tronco, realizado na cidade sulina de Gramado. Em entrevista à imprensa, o coordenador do projeto, Marcelo Morales, disse que o método é seguro, mas ainda é cedo para afirmar que esse tipo de tratamento levará à cura da moléstia.
As células-tronco foram retiradas das médulas-ósseas dos próprios pacientes. De acordo com os cientistas, é delas que pode sair a cura para a enfermidade que flagela os mineiros bolivianos – um castigo que não atinge apenas essa população. No Brasil, cerca de seis milhões de brasileiros estão, atualmente, expostos ao pó de sílica, por força de suas atividades profissionais. Não há previsão, porém, para que um eventual tratamento baseado em células-tronco chegue à rede de saúde pública.(M.V.)
Um comparativo entre o pulmão íntegro ( à dir.) e o mesmo órgão afetado pela silicose
Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/
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