Na Ilha Anchieta, em 1952, o maior massacre
Por Mauro Malin em 24/05/2011
Noticia o Painel da Folha de S. Paulo deste
domingo (21/5) que o secretário de Administração Penitenciária, Nagashi
Furukawa, sugeriu o envio de presos do PCC para a Ilha Anchieta,
município de Ubatuba, litoral norte paulista. Como o presídio que havia
no local está em ruínas, eles ficariam em barracas.
Prisioneiros em barracas
ou barracões, cercados por tropas, é campo de concentração. Já houve no
Brasil. Na seca de 1915, flagelados que invadiam Fortaleza em busca de
água e comida foram reunidos num campo do lado de fora da cidade –
assediada um ano antes por combates políticos. O esquema voltou a ser
usado na seca de 1930/32. Getúlio Vargas mandou prisioneiros políticos
para campos de concentração antes e depois da decretação do Estado Novo
(novembro de 1937). Ainda na seca de 1957/8 a situação se repetiu nos
arredores da capital cearense.
Carnificina na ilha
Se o Painel da Folha tivesse
tido a curiosidade de saber por que o presídio da Ilha Anchieta,
inaugurado em 1904, foi fechado em 1955, teria deparado com uma
carnificina considerada a maior da história prisional do mundo, até o
massacre do Carandiru. Em números absolutos, o Carandiru foi pior. Em
números relativos, a rebelião da Ilha Anchieta continua ímpar. Entre
presos rebelados, policiais, funcionários da prisão e soldados, cem
mortos. O estado de São Paulo tinha então pouco mais de 9 milhões de
habitantes. Faça a conta, leitor: em proporção à população atual, de 40
milhões, seriam 444 mortos. Numa só rebelião. Alguém acha que não fica
memória disso no sistema prisional?
Comida ruim e pancadaria
O episódio é relatado no volume IV, 1945/1960, da publicação Nosso Século (Abril Cultural, 1980).
Uma rebelião foi liderada
por João Pereira Lima, vulgo Pernambuco, em 20 de junho de 1952. Governo
de Lucas Nogueira Garcez. Tudo parecido com o que existe hoje.
A explicação dada pelo líder, segundo o Nosso Século:
“Há muito tempo, os presos viviam descontentes com o regime do presídio. (....) Os policiais obrigavam os doentes a tomar purgantes e, depois, os sujeitavam a carregar lenha do mato. (....) E
nem é bom falar da alimentação que nos davam, era uma porcaria. É
lógico, o indivíduo doente e tomando purgante não ia agüentar o rojão [cortar lenha num morro próximo]. Mas aí, os tais policiais chegavam e começavam a espancar todo mundo. E foi esse o real motivo da rebelião”.
E a publicação complementa: “Além
dessas condições carcerárias, os 453 presidiários que viviam na ilha
tinham que enfrentar dois outros problemas: muitos deles estavam com as
penas vencidas, mas continuavam presos por falta de assistência
jurídica; por outro lado, as visitas de familiares eram raras, devido às
difíceis condições de acesso à ilha”.
Os presos rebelados só foram dominados com a intervenção, ao lado da polícia, de soldados do IV Regimento de Infantaria.
Problema para várias gerações
Na Folha de ontem
o sociólogo Michel Misse alertou que a criminalidade violenta é
problema para mais de uma geração resolver. As condições em que se
desenvolveu foram criadas ao longo de uma espécie de guerra contra o
povo movida pelo Estado brasileiro. É uma situação complexa e ambígua,
porque a democratização fez com que o Estado se tornasse também cada vez
mais permeável a demandas e necessidades dos eleitores. As promessas
contidas na eleição de Luiz Inácio Lula da Silva o demonstram.
Mas o padrão de violência fica muito claro numa breve recapitulação.
Dutra, mão de ferro
No governo de Eurico Dutra
(1946-1951), como se sabe, houve uma repressão sangrenta aos
comunistas, colocados na ilegalidade em 1947. O sociólogo José de Souza
Martins descreveu os efeitos em Santo André, na Grande São Paulo, dessa
onda de prisões, assassinatos e deportações. Moradores da cidade
passaram décadas sem tocar no assunto.
Dutra havia participado de
muita repressão, desde o episódio dos 18 do Forte, em 1922, passando
pela chamada Intentona Comunista, em 1935, e pela tentativa de golpe
integralista, em 1938. O general Dutra, ministro da Guerra de Getúlio
Vargas, autorizara, em maio de 1937, o massacre, pela polícia do Ceará,
de remanescentes do Sítio do Caldeirão, liderados por um beato chamado
José Lourenço. Até aviação militar foi usada para liquidar entre 500 e
1.000 homens, mulheres e crianças.
Cabeças cortadas
O final do bando do
cangaceiro Lampião entrou para o imaginário brasileiro. Há muita
literatura sobre o assunto. Este pobre escriba não a domina. Vamos a um
resumo, tirado também do Nosso Século (vol. III, 1930-1945):
“Os soldados atacaram
de surpresa, numa madrugada de julho de 1938. Lampião e Maria Bonita
foram mortos, com mais nove companheiros. Os outros conseguiram fugir.
Os onze cangaceiros mortos foram degolados, e suas cabeças expostas nas
escadarias da igreja matriz de Santana do Ipanema, cidade próxima [da Fazenda do Angico, em Sergipe, perto da fronteira com Alagoas]. De lá, foram conduzias a Maceió, e depois para Salvador, onde foram mumificadas e entraram para o acervo do Museu Nina Rodrigues.
“Uma semana depois do
massacre de Angico, o cangaceiro Corisco – o ´Diabo Louro´ –, que havia
se separado de Lampião, constituindo um bando à parte, desfechou ataques
fulminantes sobre cidades à margem do Rio São Francisco como vingança
pela morte de seu amigo. Jurou matar todas as pessoas de sobrenome
Bezerra [João Bezerra, tenente da Força Pública alagoana, descobrira o esconderijo de Lampião]. Enviou
algumas cabeças cortadas ao prefeito do povoado de Piranhas, com um
bilhete: ´Se o negócio é de cabeças, vou mandar em quantidade´. Corisco
foi morto em julho de 1940. Terminava o cangaço”.
Contestado, a Chibata, Canudos
Para terminar, uma relação
que, como os parágrafos acima, tem intenção apenas exemplificativa.
Para ajudar a deslocar o pensamento do quadro “mocinhos X bandidos”.
Se ao leitor ocorrerem outros episódios, por favor se manifeste.
Entre 1912 e 1916, no
oeste de Santa Catarina, região do Contestado, objeto de disputa de
limites com o Paraná, uma “guerra santa” entre o Estado e camponeses
seguidores do assim dito monge João Maria, deixou 20 mil mortos.
Em 1910, a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, terminou em massacre. A citação, mais uma vez, é extraída do Nosso Século (vol. I, 1900-1910):
“Na noite morna de 22
de novembro de 1910, um tiro de canhão quebrou a paz da Baía de
Guanabara, despertando de seu sono os habitantes da cidade. Era o começo
da rebelião dos marinheiros, fartos da ´lei da chibata´, da péssima
alimentação nos navios e dos maus-tratos. No dia seguinte, a República
inteira seria sacudida pela rebelião. (....) Em dezembro, outra
revolta, dessa vez na base naval da Ilha das Cobras, justificou um
verdadeiro massacre. Vários marinheiros anistiados, já em liberdade,
foram presos e posteriormente fuzilados no cargueiro Satélite. Outros
foram enviados para os seringais do Acre. Mas a maior parte dos líderes
da revolta morreria, nas masmorras da Ilha das Cobras, asfixiada com cal
virgem, ´jogada com água dentro do subterrâneo´, segundo depoimento de
João Cândido, o líder sobrevivente, ao historiador Edmar Morel.”
O Arraial de Canudos,
fundado em 1895 por 8 mil sertanejos sob a liderança do beato Antônio
Conselheiro, também suscitou farta literatura, capitaneada por Os
Sertões, de Euclides da Cunha. Literatura que eu igualmente não domino.
Daí o recurso à síntese feita nesse trabalho notável que foi o Nosso Século (novamente, vol. I):
“Em 1896, dois
contingentes da República, um com 600 homens e outro com 1.500, apesar
de fortemente armados, foram derrotados pelos sertanejos, cuja munição
principal eram paus e pedras. Só um ano depois, em 1897, Antônio
Conselheiro seria morto e a população de Canudos dizimada por um
exército de mais de 6.000 homens”.
Nesse pequeno e, insisto,
imperfeitíssimo exercício de memória, fica não uma tentativa de misturar
fenômenos distintos, nem de fazer comparações indevidas, mas de mostrar
determinados padrões, no Brasil republicano, portanto legalmente
pós-escravista, de violência que engendra violência reprimida com
violência.FONTE: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/posts/view/na-ilha-anchieta-em-1952-o-maior-massacre
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