Ela já foi tão populosa quanto Madri e Paris; e na primeira
metade do século 17, metade da prata que circulava no mundo saía de suas
montanhas. Mas hoje, a cidade de Potosi está no estado mais miserável
da Bolívia. Do passado de riqueza proporcionado pelo minério, restou o
flagelo da silicose, a doença que mata os mineradores aos 45 anos de
idade
Marcel Vincenti
A gravura ilustra o trabalho sacrificado e arriscado na Potosi do século 18
Carmelo Ticona é um boliviano de 28 anos, e sabe que
lhe resta pouco tempo de vida. Morador da cidade de Potosi, família
pobre, ele não teve escolha: adotou, ainda adolescente, a profissão que,
no fim das contas, era seu destino certo e inadiável, a mineração.
Apesar de seguir uma tradição familiar, a busca de riqueza não é o
seu objetivo; a falta de oportunidades é o que está em pauta. Mas
Carmelo tem consciência do que resulta lutar, dentro das minas, pela
sobrevivência: uma morte prematura. "Sei que posso morrer a qualquer
momento, em algum acidente ou com a [doença pulmonar] silicose. É o
destino do mineiro. Nós não vivemos muito", diz, resignado.
Tanto na ocupação como na lucidez, Carmelo não está sozinho. Ele
integra uma legião de, aproximadamente, 13 mil mineiros, que, hoje,
vasculham as entranhas da montanha-símbolo de Potosi – e também da
Bolívia. Eles trabalham dentro do Cerro Rico. Foi aos pés desse enorme
cone de pedra que, em 1545, o pastor de lhamas Diego Huallpa viu
aflorar, à luz da fogueira, uma pequena quantidade de terra prateada.
Não demorou para que os espanhóis, na condição de colonizadores,
começassem a ordenar diversas escavações. A extensão das reservas
argentíferas que eles encontraram pode ser medido pela quantidade de
prata que extraíram. Segundo documentos da Casa da Moeda de Potosi,
entre 1545 e 1825 – ano em que a Bolívia conquistou sua independência -,
tirou-se da montanha aproximadamente 35 mil toneladas do nobre metal.
Artefatos confecc ionados com a prata de Potossi
Potosi tornou-se, ainda no século 16, uma das urbes mais ricas e
cobiçadas da colônia; em 1640, época em que metade da prata
comercializada no mundo saía do Cerro Rico, sua população de 160 mil
almas rivalizava com a de capitais como Paris e Madri. Paróquias, havia
14. Conventos, cinco. Prostitutas, mais de 120. E, reza a lenda, até as
ruas da cidade estavam banhadas com argento. A Coroa Espanhola e seus
credores exultavam. Mas a opulência – e a perspectiva de uma riqueza sem
fim -, trouxe também a degradação da vida dos indígenas.
Coube ao vice-rei Francisco de Toledo instaurar em Potosi, em 1575, o
sistema de "mitas", que obrigava boa parte dos nativos locais a labutar
dentro das minas, em situação análoga à da escravidão. A eles
juntaram-se punhados de negros, trazidos de Angola e Cabo Verde. E o
trabalho, como se pode imaginar, era árduo: equipados com picaretas,
velas de sebo e quase nenhum acessório de segurança, homens adultos,
adolescentes e crianças se embrenhavam nos túneis do Cerro Rico para,
durante horas a fio, remover e transportar o minério de prata rumo à
cidade; dali ele seguiria para o porto de Arica, no Pacífico – de onde
seria, finalmente, exportado para a Europa.
O "Tio", personagem da cultura de Cerro Rico, preside o ambiente contaminado do interior da mina
Desmoronamentos e doenças pulmonares causadas pela
poeira de sílica – composto venenoso que flutuava no ar viciado das
minas – abriam ao destino dessas pessoas duas vias: a de uma morte
súbita, ou a de um definhamento longo e doloroso. E ninguém podia se
rebelar: a recusa ao trabalho mineiro era punida com a pena capital
.Em seu "As Veias Abertas da América Latina", o historiador uruguaio
Eduardo Galeano calcula que, entre os séculos 16 e 19, cerca de oito
milhões de pessoas tenham falecido em decorrência do trabalho no Cerro
Rico. A prata praticamente acabou. Mas, longe de assustar a cultura
mineira, a exploração da combalida montanha ainda segue viva – e letal.
Embora tenha sido, entre os séculos 16 e 17, uma das principais
fontes de riqueza da Coroa Espanhola na América, Potosi é hoje a capital
do Estado mais miserável da Bolívia – que, por sua vez, é o país mais
pobre da América do Sul. Com a prata exaurida, carente de indústrias e
situado a quatro mil metros acima do nível do mar, a única coisa que o
lugar ostenta atualmente são dados estatísticos alarmantes.
A máscara ajuda a evitar a absorção de silica, mas nem sempre representa uma proteção completa
Do Cerro Rico o que mais se tira agora é chumbo, zinco, estanho e prata de baixa qualidade – num esquema de cooperativa
Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas boliviano, 36% da
população do Estado de Potosi vive em condição de indigência. A taxa de
mortalidade infantil é de 59 óbitos para cada mil nascimentos (a média
brasileira é de 20 mortes para cada mil nascimentos), e 28% dos
potosinos com mais de 15 anos são analfabetos.
Mesmo carente de seu metal mais precioso, ainda hoje o mercado de
extração de minérios é responsável por 39% do PIB potosino. Para que se
tenha uma ideia: o setor industrial representa apenas 3,5% do PIB local;
e a agricultura, uns 10%. Do Cerro Rico o que mais se tira agora é
chumbo, zinco, estanho e prata de baixa qualidade. Os mineiros trabalham
em esquema de cooperativa (são mais de 40, operando as 180 minas ativas
da montanha), e vendem os minérios para as 31 refinarias da cidade. A
maioria desses trabalhadores assegura: não consegue receber mais de dois
mil bolivianos (cerca de 500 reais) por mês.
A maioria dos mineiros de Potosi tem expectativa de vida média de apenas 45 anos
Ao contrário do salário, o custo de tal empreitada é
alto: de acordo com Gualberto Astorga, pneumologista da Caixa Nacional
de Saúde – hospital de Potosi que atende a maioria dos mineiros doentes
-, a expectativa de vida de um trabalhador do Cerro Rico é de apenas 45
anos (em toda a Bolívia, as pessoas vivem, em média, 66 anos, e, no
Brasil, 73 anos). A principal razão: a silicose, doença causada pela
saturação da poeira de sílica nos pulmões dos mineiros. A moléstia é
incurável e, se não for tratada, faz a vítima definhar até
impossibilitá-la de respirar por suas próprias forças, matando-a.
"Em geral, eles [os mineiros] apresentam os primeiros sintomas de
silicose dez anos depois de terem começado a trabalhar na mina", diz
Astorga. "Se, a partir daí, mudassem de emprego, conseguiriam preservar a
saúde. Mas o problema é que eles não têm outra coisa a fazer, e se
conformam. As esposas nem choram quando, mais tarde, damos a notícia do
óbito".
Potosi venera Pacha Mama, a divindade indígena Mãe Terra
Dentro da mina, o trabalho dos operários transcorre sob permanente estado de tensão
Este mineiro usa um simples pedaço de pano à guiza de máscara – proteção, é óbvio, insuficiente
À explicação do médico junta-se uma sinfonia de tosses secas que ecoa
pelos corredores da Caixa Nacional. Com o cabide de soro na mão,
pacientes caminham vagarosamente pelos corredores, como em um fluxo
melancólico. Domingo Ari, 48 anos, mineiro desde os 15, é um deles.
Sentado sob o sol que banha o pátio do hospital, o rosto cadavérico e as
mãos, sem força, largadas sobre os joelhos, ele conta que, aos 10 anos,
viu seu pai, também escavador, morrer de silicose. "Dois dos meus
quatro filhos trabalham nas minas, e agora sou eu quem está doente",
diz, entre um espasmo e outro.
Para o médico Juan Carlos Oporto, do Centro de Saúde Cerro de Prata,
que presta atendimento regular e os primeiros socorros a cinco mil
trabalhadores do Cerro Rico, a cultura mineira é "autodestrutiva". "Há
muita ignorância entre esses homens. Eles trabalham em demasia, bebem
muito e não estão preocupados com o futuro. Dos meus pacientes, pelo
menos 1.500 já têm silicose", contabiliza.
Outras estimativas de Oporto: ele assina, em média, 12 diagnósticos
de silicose por mês; e, todos os anos, perde ao menos 25 pacientes
mineiros, que vão à óbito em decorrência do trabalho na mina. Mas há
outros dados alarmantes no setor: "20% das pessoas que atendo por mês na
clínica (ou seja, aproximadamente 1.000) são menores de idade, alguns
com menos de 15 anos", revela o médico.
Segundo ele, o trabalho no Cerro Rico acarreta também uma grande
incidência de "doenças de pele, desnutrição, bronquite e problemas
nervosos". Isso para não se falar nos acidentes de trabalho. Oporto diz
receber pelo menos três pessoas acidentadas diariamente em seu hospital.
"É, sem dúvida, uma das piores maneiras de se levar a vida", ele
conclui.
Bananas de dinamites usadas no interior de Cerro Rico
As entranhas do Cerro Rico são, talvez, o cenário
mais próximo do inferno a ser visto na Terra. Trata-se de um labirinto
de corredores estreitos, abafados, úmidos, escuros e lotados de poeira
de sílica, que se conectam uns aos outros por meio de buracos e escadas
precárias. Ao visitante de primeira viagem, o lugar causa repulsa. Nos
trabalhadores, parece injetar o veneno do conformismo.
Em seu interior circulam homens de feições cansadas e olhares vazios,
a terra grudada no suor da face, o caminho iluminado pela luz parca dos
capacetes. Eles empurram carretas lotadas de pedregulhos, agridem a
rocha com suas picaretas e, de vez em quando, ouvem um " bum!", que faz a
atmosfera tremer – a explosão de uma carga de dinamite. Não há nada de
extraordinário nisso: em Potosi, o explosivo é comprado na rua, sem
qualquer restrição. Uma banana de dinamite custa, em média, o
equivalente a 5 reais.
Muitos mineiros trabalham em turnos de 24 horas e têm como único
alimento as folhas de coca – que, armazenadas por longo tempo nas
bochechas, são capazes de diminuir a fome. Tal qual formigas, eles
circulam sem parar entre os diversos níveis da mina, até uma
profundidade de 1.500 metros. Isso os submete a variações bruscas de
clima. Nos corredores bafejados por correntes de ar, a temperatura é de
10 °C. Nas câmaras de trabalho, onde os homens manejam pás e picaretas
incessantemente, o calor passa dos 40 °C.
O ar, por sua vez, é turvo, carregado de um rançoso odor metálico.
Nesse ambiente, a boca seca, a garganta fica irritada, os olhos ardem. A
uma altitude de quatro mil metros, os mineiros têm duas opções: usar
máscaras de proteção contra a sílica venenosa, ou abandoná-las e
desfrutar a sensação de respirar melhor. Muitos optam pela segunda
alternativa. E, dessa forma, tentam seguir a vida.
O mineiro é jovem – menos de 40 anos – mas sua pele denota o desgaste físico que o trabalho acarreta
Sentado ao lado de seus dois irmãos, de 22 e 18
anos, Carmelo Ticona termina mais uma garrafa de cerveja morna. O rosto
ossudo, de nariz adunco e olhos avermelhados, exibe uma pele morena,
áspera como a terra que a reveste. Na dentadura incompleta ele masca,
compulsivamente, resíduos de folhas de coca. Seu universo é a vila de
Pailaviri, onde tem sua casa, cheia de construções pobres, erguida ao
lado da entrada de uma das minas do Cerro Rico.
É época da festa conhecida como Wilancha. Reunidos em grupos de 10 a
20 pessoas, cerca de 200 mineiros e familiares se preparam para o grande
momento do dia: o derramamento de sangue. Cada grupo carrega entre duas
e cinco lhamas. A bebedeira é enorme: muita cerveja, singani
(aguardente de uva) e Ceibo (bebida com teor alcoólico de 96%).
As crianças brincam, enquanto as mulheres começam a acender
fogueiras. Já embriagados, Carmelo e seus companheiros saltam sobre um
dos animais (que pesam cerca de 200 kg), sujeitam-no no chão e, com uma
faca de cozinha, cortam seu pescoço. O sangue que jorra das artérias
abertas é recolhido em pratos de metal e jogado na boca da mina, na
parede das casas e, em alguns casos, nos rostos das pessoas. A carne,
mais tarde, virará churrasco.
O sacrifício é uma forma de venerar Pacha Mama, a divindade indígena
Mãe Terra, e, acima de tudo, apaziguar a sede de uma das figuras mais
respeitadas pela cultura mineira: o "Tio" – como é conhecido o diabo que
habita o interior do Cerro Rico. "Somos católicos", diz Juan, irmão
mais novo de Carmelo. "Mas, dentro da mina, para nós Deus não existe.
Por isso homenageamos o Tio, para que ele nos proteja de acidentes e da
morte".
Ritual da matança de lhama para a festa conhecida como Wilancha
A figura de tal entidade é, de fato, assustadora. Dezenas de estátuas
suas adornam o interior da mina, e seguem o mesmo padrão: feitas de
barro no tamanho de um ser humano, elas mostram o "Tio" sentado em um
trono, exibindo um falo avantajado e, na cabeça, tétricos chifres de
cabra. O rosto tem feição raivosa. Aos pés das imagens os trabalhadores
do Cerro Rico deixam folhas de coca, bebidas alcoólicas, cigarros e
fotos de mulheres nuas.
Corolário da fé cristã trazida pelos espanhóis à América, a veneração
dos mineiros à figura do diabo facilita uma conclusão esclarecedora: a
de que, com a alma vendida à prata, só resta a esses homens conformar-se
com a vida no inferno. A Bolívia, conforme escreveu Eduardo Galeano, é
"vítima de sua própria riqueza".
Cientistas avançam rumo à cura da silicose
A 2 de outubro último, cientistas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro apresentaram os resultados de uma pesquisa que pode abrir
caminho para a cura da silicose.
Em um experimento inédito no mundo, eles injetaram células-tronco no
pulmão de cinco pessoas acometidas pela doença, e puderam observar:
durante certo espaço de tempo, essa intervenção conteve a inflamação nas
vias respiratórias dos pacientes.
A pesquisa foi apresentada no 5º Congresso Brasileiro de Células
Tronco, realizado na cidade sulina de Gramado. Em entrevista à imprensa,
o coordenador do projeto, Marcelo Morales, disse que o método é seguro,
mas ainda é cedo para afirmar que esse tipo de tratamento levará à cura
da moléstia.
As células-tronco foram retiradas das médulas-ósseas dos próprios
pacientes. De acordo com os cientistas, é delas que pode sair a cura
para a enfermidade que flagela os mineiros bolivianos – um castigo que
não atinge apenas essa população. No Brasil, cerca de seis milhões de
brasileiros estão, atualmente, expostos ao pó de sílica, por força de
suas atividades profissionais. Não há previsão, porém, para que um
eventual tratamento baseado em células-tronco chegue à rede de saúde
pública.(M.V.)
Um comparativo entre o pulmão íntegro ( à dir.) e o mesmo órgão afetado pela silicose
Fonte:
http://leiturasdahistoria.uol.com.br/