Água doce: O ouro do século 21
Por Eduardo Araia
O consumo mundial de água subiu cerca de seis vezes nas
últimas cinco décadas. O Dia Mundial da Água, em 22 de março, encontra o
líquido sinônimo de vida numa encruzilhada: a exploração excessiva
reduz os estoques disponíveis a olhos vistos, mas o homem ainda reluta
em adotar medidas que garantam sua preservação. De todas as moedas, a
água é a que mais determinará a paz ou a guerra entre as nações no nosso
século
É na árida e pedregosa área do Wadi (“riacho”, em árabe) Faynan, no sul da Jordânia, que arqueólogos britânicos e jordanianos estudam um precioso achado histórico. Evidências indicam que ali, entre 11.600 e 10.200 antes de Cristo, homens e mulheres se estabeleceram não por uma temporada ou estação do ano, mas em caráter permanente. Se a hipótese for confirmada, trata-se de um dos mais antigos assentamentos definitivos do mundo, no qual seus habitantes aprenderam a lavrar a terra e a criar animais. Ou seja: foi um dos primeiros momentos em que o homem deixou o nomadismo para se tornar sedentário – uma mudançachave no curso da civilização.
Mas por que uma área tão seca teria sido escolhida por esses pioneiros? O arqueólogo Steven Mithen, da Universidade de Reading (Grã-Bretanha) e um dos líderes da pesquisa, explica que a paisagem local era bem diferente naquela época. Havia vegetação, incluindo figos, legumes e cereais; havia cabras selvagens, cuja carne seria uma alternativa de alimento; o próprio clima era mais frio e úmido; e, naturalmente, havia água.
De toda a água existente do planeta, apenas 3% é doce, e a maior parte desse percentual está em geleiras. Mas o restante, se bem usado, pode abastecer a natureza e o homem.
A comparação do Wadi Faynan de hoje com o que teria sido há mais de 10 mil anos remete a uma questão atualíssima: o uso da água. Numa região que talvez nunca tenha apresentado abundância desse líquido, as demandas originadas por uma população crescente podem ter ajudado a secar a fonte que tornava a vida possível. Esse padrão insustentável continua em vigor nas mais variadas latitudes e torna a falta d’água um perigo mundial.
De acordo com os pesquisadores, os habitantes originais do Wadi Faynan devem ter seguido um roteiro bem conhecido nosso. Começaram por abater árvores para fazer abrigos e usá-las como combustível. O desmatamento descuidado, porém, levou a um ponto em que as chuvas, em vez de se infiltrarem em aquíferos e lençóis freáticos, devastaram o solo. Em seguida, as fontes foram secando. Enquanto isso, a necessidade de produzir mais alimentos levava os agricultores a desviar águas dos mananciais que resistiam para irrigar as lavouras. E o clima úmido e ameno do início foi se tornando cada vez mais seco e quente.
Para Mithen e seus colegas, o assentamento do Wadi Faynan foi abandonado pelo menos duas vezes. Uma grande mudança climática foi o motivo da primeira mudança; o agravamento da poluição justificou a segunda. Hoje em dia, os beduínos que habitam a área são obrigados a usar dutos por baixo do leito seco do riacho para succionar o que resta de água a fim de irrigar seus campos de tomates. Essa tarefa, porém, está cada vez mais complicada: as boas chuvas, que já vinham em anos alternados, têm despejado menos água do que no passado.
“O início das comunidades sedentárias é o início da necessidade de administrar suprimentos de água doce”, diz Mithen. “Esse é um ponto de partida para o nosso grande dilema moderno. De preocupação de indivíduos, passou para cidades, nações e hoje é um tema global.”
A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que cerca de 1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável e pelo menos 2 bilhões não conseguem água adequada para beber, lavar-se e comer. Viver com escassez de água é uma condição associada a milhões de mortes ao ano causadas por doença, má nutrição, fome crônica. Ao afastar meninos e meninas da escola, ela impede que as crianças e seus parentes e amigos tenham acesso a informações que lhes darão uma vida melhor.
A escassez de água e a pobreza criam uma armadilha da qual é difícil escapar. Cerca de dois terços das pessoas que não dispõem de água para suas necessidades básicas vivem com menos de US$ 2 por dia. “A variação da disponibilidade de água é forte e negativamente relacionada à renda per capita”, afirma Jeffrey Sachs, autor de Common Wealth: Economics For a Crowded Planet e consultor especial para o secretáriogeral da ONU.
Estoques desarranjados
Os efeitos do aquecimento global e a água do planeta
Índices pluviométricos mais variáveis
Mais enchentes
Mais secas
Degelo de glaciares dos quais 1 bilhão de pessoas dependem, por conta dos fluxos dos rios no verão
Aumento do nível do mar, com risco de inundação de comunidades costeiras, aquíferos de água doce, deltas de rios e mangues
Atualmente, a falta d’água já não é particularidade de países pobres. Na Califórnia, o governador Arnold Schwarzenegger declarou em 2008 a primeira seca estadual em 17 anos. A notícia não chega a surpreender muito porque parte do território californiano é desértica. Mais espantosa foi a estiagem no úmido sudeste dos Estados Unidos em 2007, que levou a prefeitura de Orme, no Tennessee, a liberar o consumo de água dos reservatórios municipais por apenas três horas diárias. Em maio de 2008, a prefeitura de Barcelona, pressionada pela maior seca de sua história, importou água de outras cidades (incluindo a francesa Marselha) para abastecer seus 3,2 milhões de moradores.
Nos últimos 50 anos, o aumento da população e as necessidades derivadas dele fizeram o consumo de água subir seis vezes. Mas a má gestão desse recurso tem diminuído os estoques aproveitáveis.
Seis anos seguidos de estiagens severas, iniciadas em 2002, já reduziram em 98% a produção de arroz da Austrália, e um relatório do governo local prevê que o sistema de abastecimento humano poderá entrar em crise se a situação não melhorar este ano. Segundo o texto, desde 1986 as secas ocorrem no país, em média, a cada dois anos, e as crescentes ondas de calor e mudanças do regime de chuvas podem tornar as secas parte permanente da paisagem australiana.
O crescimento populacional e a necessidade de abastecer as pessoas com água – incluindo aí uma atividade crucial, a agricultura – são fatores essenciais na questão, que o aquecimento global só vem agravar. Só para atender à produção de alimentos, o Banco Mundial estima que o consumo de água aumentará 50% por volta de 2030. Especialistas anteveem que, se nada for feito, bilhões de indivíduos se juntarão aos que já sofrem com a falta d’água. As decorrências disso serão doenças, fome, migrações e guerras.
De acordo com especialistas, a quantidade de água doce na Terra que não está presa nas geleiras da Antártida e da Groenlândia é de cerca de 10 milhões de quilômetros cúbicos, transitando entre a atmosfera e a terra, em ciclos de evaporação e precipitação, e encontráveis em depósitos como rios, lagos, glaciares, aquíferos subterrâneos e pântanos. Essa pequena fração do todo é mais do que suficiente, segundo os cientistas, para abastecer os 6,5 bilhões de habitantes do planeta. O geógrafo John Anthony Allan, do King’s College de Londres, estima que todos os terrestres precisam de “apenas” 8 mil km3 de água anualmente.
Pelos cálculos da ONU, cada pessoa necessita de 5 litros diários de água para sobreviver em um clima moderado, e no mínimo 50 litros por dia para beber, cozinhar, banhar-se e usar em higiene. O consumo doméstico representa 10% do volume da água usada pelo homem. A indústria utiliza o dobro disso, e a agricultura, sete vezes mais.
O aumento da população humana e as demandas que ele origina fizeram o consumo de água subir cerca de seis vezes nas últimas cinco décadas. A má gestão da água, por seu lado, tem reduzido os estoques aproveitáveis. Ao interromperem o livre fluxo dos cursos d’água em que se localizam, cerca de 845 mil represas em todo o mundo restringem a passagem de água e sedimentos para as comunidades rio abaixo e aumentam a evaporação. O desperdício com vazamentos atinge até 50% da água. Segundo a ONU, substâncias químicas e metais pesados despejados na água por indústrias e fazendas estão envenenando mais de 100 milhões de pessoas. E o regime de chuvas está mudando para pior em muitas áreas.
A ONU considera “escassez de água” a disponibilidade de menos de mil metros cúbicos anuais de água doce para cada pessoa. Essa medida põe cerca de metade da população mundial em países com escassez de água. A Jordânia está entre os mais atingidos: a média ali é de 160 m3 anuais de água doce por pessoa. O resultado disso é um severo racionamento. Os 2 milhões de habitantes da região metropolitana da capital do país, Amã, e das áreas agrícolas próximas só dispõem de água um dia por semana.
Por fim, existe a ameaça cada vez maior de conflitos pela posse de água. O líquido é um componente crucial no cenário do Oriente Médio, por exemplo: o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev declarou na 3ª Conferência Mundial sobre Água, em 2003, que na história recente haviam sido travados 21 confrontos armados envolvendo água, 18 dos quais em Israel. Segundo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, a guerra em Darfur (Sudão), que já levou à morte mais de 200 mil pessoas, começou com uma “crise ecológica provocada por uma alteração climática”.
Se o líquido sinônimo de vida já adquiriu tamanho valor, por que continua a ser desperdiçado? O primeiro motivo é óbvio: quem tem dinheiro consegue a preferência. Países ricos em petróleo no Golfo Pérsico possuem usinas de dessalinização, enquanto os palestinos sofrem com a água escassa. O rico sul da Califórnia e a meca do jogo, Las Vegas, estão em áreas desérticas, mas ostentam inúmeras piscinas e fontes. Enquanto a população de Amã sofre com o racionamento de água, os turistas hospedados nos principais hotéis da cidade não têm restrição alguma de consumo.
Outro fator importante é a crença da maioria das pessoas de que a água é um “bem comum”, que não pertence a ninguém em especial. Um agricultor não se acanha em desviar parte do fluxo do rio próximo para irrigar sua plantação, porque vai pagar nada ou pouco por isso. A mesma crença está por trás de gestos como lavar a calçada com mangueira ou deixar a torneira aberta enquanto escova os dentes. O baixo custo do serviço incentiva o desperdício e desestimula investimentos na área.
O terceiro motivo está nos subsídios dos países ricos a seus agricultores, cuja produção de grãos, assim impulsionada, origina estoques gigantescos a preços mais baixos. O impacto dessa característica foi vislumbrado por John Anthony Allan. Ele se perguntou por que nações do Oriente Médio com escassez de água não mostravam sinais mais evidentes de uma crise em relação ao líquido e descobriu que elas “importavam” água dentro dos alimentos que adquiriam para seu abastecimento. O conceito de “água virtual” criado por Allan é a fórmula que calcula a quantidade de água necessária para a produção de qualquer alimento ou manufatura (ver tabela à pág. 49).
Por fim, há uma evidente desproporção entre o que é extraído e o volume de reposição disponível, sobretudo a partir do século passado. A falta de atenção a esse detalhe já custou, por exemplo, a saúde do Mar de Aral, na Ásia Central, que começou a secar nos anos 1930 com o desvio das águas de seus tributários para irrigar plantações de algodão. O surgimento de poderosas bombas de sucção, na segunda metade do século 20, piorou ainda mais a situação. O resultado disso é a queda substancial dos estoques de água em importantes regiões agrícolas, como a planície norte da China, o Punjab, na Índia, e o sul das Grandes Planícies dos EUA. A redução da quantidade de água nesses reservatórios também repercute na natureza: segundo a ONU, o número de peixes de água doce caiu 50% entre 1970 e 2000.
Efeitos da escassez
A falta de água adequada para ser bebida e usada na higiene é a principal responsável...
... pela morte, a cada ano, de 11 milhões de crianças com menos de 5 anos, causada por doenças e má nutrição
... pela fome crônica de cerca de 1 bilhão de pessoas
... pela “insegurança alimentar” que, segundo a FAO, acomete 2 bilhões de pessoas, cuja nutrição não é considerada adequada para uma “vida ativa e saudável”
... por ajudar a manter mais de 60 milhões de meninas longe da escola
O aquecimento global traz outras variáveis (ver quadro à pág. 45). Segundo os cientistas, o acréscimo de um grau centígrado à temperatura média mundial fará o volume de chuvas aumentar 1% – resultado da absorção de mais umidade pelo ar mais quente. Não haveria mudança no volume total de água na Terra, mas ela seria reciclada mais rapidamente, causando desarranjos na agricultura mundial. Conscientes dos efeitos negativos do consumo excessivo de água sobre a natureza, alguns países já estabeleceram leis que garantem “fluxos ambientais mínimos”. Há outras medidas recomendadas, cuja aplicação depende das várias instâncias envolvidas – desde a individual até a internacional.
Precificar adequadamente a água
São Paulo não pagava nada pelos 31 mil litros de água que retirava por segundo do Sistema Cantareira (correspondente ao trecho leste da bacia do rio Piracicaba) entre 1974 e 2006. Nesse ano, a promulgação da lei de cobrança do uso de água obrigou a cidade a desembolsar anualmente R$ 11 milhões com essa finalidade.
O dinheiro arrecadado vai para o comitê gestor da bacia do Piracicaba e é aplicado na preservação dos rios. Outras bacias, como a do Paraíba do Sul e de rios da região metropolitana de Curitiba, também cobram pela água extraída de seus leitos.
Eficiência doméstica
Medidas simples ajudam bastante na redução do consumo. Uma torneira gotejando desperdiça 1.380 litros por mês. Um buraco de dois milímetros no encanamento causa o vazamento de 3.200 litros por dia.
Eficiência dos fornecedores
Calcula-se que, na Grande São Paulo, vazamentos na rede da Sabesp levam embora 18% da água captada. A porcentagem corresponde a 1 bilhão de litros por dia, que, com o desconto das perdas, poderiam abastecer 3,7 milhões de consumidores.
Eficiência na agricultura
Há três caminhos principais: conseguir versões de sementes aptas a crescer em ambientes mais secos e salgados, melhorar o desempenho da irrigação e trocar culturas, plantando vegetais mais compatíveis com o atual estado da terra e do clima.
Reaproveitamento
O potencial do reaproveitamento de água é gigantesco. Para se ter uma ideia, é possível até tornar potável a água poluída por dejetos (os moradores do rico condado de Orange, no sul da Califórnia, consomem água reaproveitada de esgoto desde a década de 1970).
Aquíferos ameaçados
O Brasil possui situação privilegiada – 12% das reservas de água doce do mundo estão aqui – graças a seus imensos mananciais no subsolo.
O Aquífero Guarani, por exemplo, é o maior do mundo. Estende-se por 1,2 milhão de km2, do sul do País até o início da Bacia Amazônica, penetrando no Paraguai, Uruguai e Argentina. A espessura total do aquífero varia de 50 a 800 metros; considerando-se uma espessura média aquífera de 250 metros e porosidade efetiva de 15%, estima-se que as reservas permanentes do Guarani (água acumulada ao longo do tempo) sejam de 45.000 km³. Mas até mesmo reservas como essa estão ameaçadas pela poluição ambiental por agrotóxicos, pelo desmatamento não sustentável, pela irrigação artificial de áreas agrícolas e pelas alterações no regime pluvial devido a fatores como o aquecimento global.
Dessalinização
Essa alternativa onerosa fica viável em países com estoques de água precários. Segundo o boletim inglês Global Water Intelligence, a capacidade de dessalinização terá mais que dobrado por volta de 2015.
Comércio
Os subsídios agrícolas representam uma severa distorção comercial, mas, em certos casos, é preferível importar alimentos e bens industriais a produzi-los internamente a um custo em água proibitivo. Segundo a organização International Water Management Institute (IWMI), a demanda por irrigação seria 11% maior sem o comércio – percentual que subiria para algo entre 19% e 38% por volta de 2025.
Técnicas tradicionais
Alguns métodos usados antigamente permanecem atualíssimos: replantar árvores, em especial perto de mananciais; arrancar árvores exóticas cuja sobrevivência exija muita água; coletar água da chuva com lagos e tanques; erguer muros de pedra para conter a erosão.
Dieta vegetariana
A produção de um quilo de carne bovina exige 17.100 litros de água, enquanto um quilo de carne suína demanda 5.250 litros. Por outro lado, há 1.000 litros de “água virtual” em um quilo de legumes ou de raízes e tubérculos (ver tabela ao lado). Portanto, ser vegetariano ajuda muito na preservação da água.
Pelo menos parte dessas alternativas está sendo adotada ao redor do mundo. Mas há obstáculos ainda consideráveis a superar. A pobreza, como sublinhou Jeffrey Sachs, é um deles. A visão da água como um bem barato ou gratuito ainda está arraigada em muitos lugares, e vários agricultores relutam em rever suas culturas e métodos de plantio. Assim, forma-se um cenário de certo modo similar ao do aquecimento global: o diagnóstico existe e está bem-feito, mas as medidas para resolver o problema tardam a ser tomadas – e a demora pode nos custar muito caro. O biogeógrafo norte-americano Jared Diamond, autor de Colapso – como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso (Editora Record), afirma que as sociedades que perduraram tinham uma visão de longo prazo e mostravam flexibilidade e força de vontade para mudar seus valores quando eles não lhes serviam mais. Será que os humanos contemporâneos possuem essas características?
FONTE: http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/meio-ambiente/agua-doce-o-ouro-do-seculo-21
É na árida e pedregosa área do Wadi (“riacho”, em árabe) Faynan, no sul da Jordânia, que arqueólogos britânicos e jordanianos estudam um precioso achado histórico. Evidências indicam que ali, entre 11.600 e 10.200 antes de Cristo, homens e mulheres se estabeleceram não por uma temporada ou estação do ano, mas em caráter permanente. Se a hipótese for confirmada, trata-se de um dos mais antigos assentamentos definitivos do mundo, no qual seus habitantes aprenderam a lavrar a terra e a criar animais. Ou seja: foi um dos primeiros momentos em que o homem deixou o nomadismo para se tornar sedentário – uma mudançachave no curso da civilização.
Mas por que uma área tão seca teria sido escolhida por esses pioneiros? O arqueólogo Steven Mithen, da Universidade de Reading (Grã-Bretanha) e um dos líderes da pesquisa, explica que a paisagem local era bem diferente naquela época. Havia vegetação, incluindo figos, legumes e cereais; havia cabras selvagens, cuja carne seria uma alternativa de alimento; o próprio clima era mais frio e úmido; e, naturalmente, havia água.
De toda a água existente do planeta, apenas 3% é doce, e a maior parte desse percentual está em geleiras. Mas o restante, se bem usado, pode abastecer a natureza e o homem.
A comparação do Wadi Faynan de hoje com o que teria sido há mais de 10 mil anos remete a uma questão atualíssima: o uso da água. Numa região que talvez nunca tenha apresentado abundância desse líquido, as demandas originadas por uma população crescente podem ter ajudado a secar a fonte que tornava a vida possível. Esse padrão insustentável continua em vigor nas mais variadas latitudes e torna a falta d’água um perigo mundial.
De acordo com os pesquisadores, os habitantes originais do Wadi Faynan devem ter seguido um roteiro bem conhecido nosso. Começaram por abater árvores para fazer abrigos e usá-las como combustível. O desmatamento descuidado, porém, levou a um ponto em que as chuvas, em vez de se infiltrarem em aquíferos e lençóis freáticos, devastaram o solo. Em seguida, as fontes foram secando. Enquanto isso, a necessidade de produzir mais alimentos levava os agricultores a desviar águas dos mananciais que resistiam para irrigar as lavouras. E o clima úmido e ameno do início foi se tornando cada vez mais seco e quente.
Para Mithen e seus colegas, o assentamento do Wadi Faynan foi abandonado pelo menos duas vezes. Uma grande mudança climática foi o motivo da primeira mudança; o agravamento da poluição justificou a segunda. Hoje em dia, os beduínos que habitam a área são obrigados a usar dutos por baixo do leito seco do riacho para succionar o que resta de água a fim de irrigar seus campos de tomates. Essa tarefa, porém, está cada vez mais complicada: as boas chuvas, que já vinham em anos alternados, têm despejado menos água do que no passado.
“O início das comunidades sedentárias é o início da necessidade de administrar suprimentos de água doce”, diz Mithen. “Esse é um ponto de partida para o nosso grande dilema moderno. De preocupação de indivíduos, passou para cidades, nações e hoje é um tema global.”
A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que cerca de 1 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável e pelo menos 2 bilhões não conseguem água adequada para beber, lavar-se e comer. Viver com escassez de água é uma condição associada a milhões de mortes ao ano causadas por doença, má nutrição, fome crônica. Ao afastar meninos e meninas da escola, ela impede que as crianças e seus parentes e amigos tenham acesso a informações que lhes darão uma vida melhor.
A escassez de água e a pobreza criam uma armadilha da qual é difícil escapar. Cerca de dois terços das pessoas que não dispõem de água para suas necessidades básicas vivem com menos de US$ 2 por dia. “A variação da disponibilidade de água é forte e negativamente relacionada à renda per capita”, afirma Jeffrey Sachs, autor de Common Wealth: Economics For a Crowded Planet e consultor especial para o secretáriogeral da ONU.
Estoques desarranjados
Os efeitos do aquecimento global e a água do planeta
Índices pluviométricos mais variáveis
Mais enchentes
Mais secas
Degelo de glaciares dos quais 1 bilhão de pessoas dependem, por conta dos fluxos dos rios no verão
Aumento do nível do mar, com risco de inundação de comunidades costeiras, aquíferos de água doce, deltas de rios e mangues
Atualmente, a falta d’água já não é particularidade de países pobres. Na Califórnia, o governador Arnold Schwarzenegger declarou em 2008 a primeira seca estadual em 17 anos. A notícia não chega a surpreender muito porque parte do território californiano é desértica. Mais espantosa foi a estiagem no úmido sudeste dos Estados Unidos em 2007, que levou a prefeitura de Orme, no Tennessee, a liberar o consumo de água dos reservatórios municipais por apenas três horas diárias. Em maio de 2008, a prefeitura de Barcelona, pressionada pela maior seca de sua história, importou água de outras cidades (incluindo a francesa Marselha) para abastecer seus 3,2 milhões de moradores.
Nos últimos 50 anos, o aumento da população e as necessidades derivadas dele fizeram o consumo de água subir seis vezes. Mas a má gestão desse recurso tem diminuído os estoques aproveitáveis.
Seis anos seguidos de estiagens severas, iniciadas em 2002, já reduziram em 98% a produção de arroz da Austrália, e um relatório do governo local prevê que o sistema de abastecimento humano poderá entrar em crise se a situação não melhorar este ano. Segundo o texto, desde 1986 as secas ocorrem no país, em média, a cada dois anos, e as crescentes ondas de calor e mudanças do regime de chuvas podem tornar as secas parte permanente da paisagem australiana.
O crescimento populacional e a necessidade de abastecer as pessoas com água – incluindo aí uma atividade crucial, a agricultura – são fatores essenciais na questão, que o aquecimento global só vem agravar. Só para atender à produção de alimentos, o Banco Mundial estima que o consumo de água aumentará 50% por volta de 2030. Especialistas anteveem que, se nada for feito, bilhões de indivíduos se juntarão aos que já sofrem com a falta d’água. As decorrências disso serão doenças, fome, migrações e guerras.
De acordo com especialistas, a quantidade de água doce na Terra que não está presa nas geleiras da Antártida e da Groenlândia é de cerca de 10 milhões de quilômetros cúbicos, transitando entre a atmosfera e a terra, em ciclos de evaporação e precipitação, e encontráveis em depósitos como rios, lagos, glaciares, aquíferos subterrâneos e pântanos. Essa pequena fração do todo é mais do que suficiente, segundo os cientistas, para abastecer os 6,5 bilhões de habitantes do planeta. O geógrafo John Anthony Allan, do King’s College de Londres, estima que todos os terrestres precisam de “apenas” 8 mil km3 de água anualmente.
Pelos cálculos da ONU, cada pessoa necessita de 5 litros diários de água para sobreviver em um clima moderado, e no mínimo 50 litros por dia para beber, cozinhar, banhar-se e usar em higiene. O consumo doméstico representa 10% do volume da água usada pelo homem. A indústria utiliza o dobro disso, e a agricultura, sete vezes mais.
O aumento da população humana e as demandas que ele origina fizeram o consumo de água subir cerca de seis vezes nas últimas cinco décadas. A má gestão da água, por seu lado, tem reduzido os estoques aproveitáveis. Ao interromperem o livre fluxo dos cursos d’água em que se localizam, cerca de 845 mil represas em todo o mundo restringem a passagem de água e sedimentos para as comunidades rio abaixo e aumentam a evaporação. O desperdício com vazamentos atinge até 50% da água. Segundo a ONU, substâncias químicas e metais pesados despejados na água por indústrias e fazendas estão envenenando mais de 100 milhões de pessoas. E o regime de chuvas está mudando para pior em muitas áreas.
A ONU considera “escassez de água” a disponibilidade de menos de mil metros cúbicos anuais de água doce para cada pessoa. Essa medida põe cerca de metade da população mundial em países com escassez de água. A Jordânia está entre os mais atingidos: a média ali é de 160 m3 anuais de água doce por pessoa. O resultado disso é um severo racionamento. Os 2 milhões de habitantes da região metropolitana da capital do país, Amã, e das áreas agrícolas próximas só dispõem de água um dia por semana.
Por fim, existe a ameaça cada vez maior de conflitos pela posse de água. O líquido é um componente crucial no cenário do Oriente Médio, por exemplo: o ex-presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev declarou na 3ª Conferência Mundial sobre Água, em 2003, que na história recente haviam sido travados 21 confrontos armados envolvendo água, 18 dos quais em Israel. Segundo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, a guerra em Darfur (Sudão), que já levou à morte mais de 200 mil pessoas, começou com uma “crise ecológica provocada por uma alteração climática”.
Se o líquido sinônimo de vida já adquiriu tamanho valor, por que continua a ser desperdiçado? O primeiro motivo é óbvio: quem tem dinheiro consegue a preferência. Países ricos em petróleo no Golfo Pérsico possuem usinas de dessalinização, enquanto os palestinos sofrem com a água escassa. O rico sul da Califórnia e a meca do jogo, Las Vegas, estão em áreas desérticas, mas ostentam inúmeras piscinas e fontes. Enquanto a população de Amã sofre com o racionamento de água, os turistas hospedados nos principais hotéis da cidade não têm restrição alguma de consumo.
Outro fator importante é a crença da maioria das pessoas de que a água é um “bem comum”, que não pertence a ninguém em especial. Um agricultor não se acanha em desviar parte do fluxo do rio próximo para irrigar sua plantação, porque vai pagar nada ou pouco por isso. A mesma crença está por trás de gestos como lavar a calçada com mangueira ou deixar a torneira aberta enquanto escova os dentes. O baixo custo do serviço incentiva o desperdício e desestimula investimentos na área.
O terceiro motivo está nos subsídios dos países ricos a seus agricultores, cuja produção de grãos, assim impulsionada, origina estoques gigantescos a preços mais baixos. O impacto dessa característica foi vislumbrado por John Anthony Allan. Ele se perguntou por que nações do Oriente Médio com escassez de água não mostravam sinais mais evidentes de uma crise em relação ao líquido e descobriu que elas “importavam” água dentro dos alimentos que adquiriam para seu abastecimento. O conceito de “água virtual” criado por Allan é a fórmula que calcula a quantidade de água necessária para a produção de qualquer alimento ou manufatura (ver tabela à pág. 49).
Por fim, há uma evidente desproporção entre o que é extraído e o volume de reposição disponível, sobretudo a partir do século passado. A falta de atenção a esse detalhe já custou, por exemplo, a saúde do Mar de Aral, na Ásia Central, que começou a secar nos anos 1930 com o desvio das águas de seus tributários para irrigar plantações de algodão. O surgimento de poderosas bombas de sucção, na segunda metade do século 20, piorou ainda mais a situação. O resultado disso é a queda substancial dos estoques de água em importantes regiões agrícolas, como a planície norte da China, o Punjab, na Índia, e o sul das Grandes Planícies dos EUA. A redução da quantidade de água nesses reservatórios também repercute na natureza: segundo a ONU, o número de peixes de água doce caiu 50% entre 1970 e 2000.
Efeitos da escassez
A falta de água adequada para ser bebida e usada na higiene é a principal responsável...
... pela morte, a cada ano, de 11 milhões de crianças com menos de 5 anos, causada por doenças e má nutrição
... pela fome crônica de cerca de 1 bilhão de pessoas
... pela “insegurança alimentar” que, segundo a FAO, acomete 2 bilhões de pessoas, cuja nutrição não é considerada adequada para uma “vida ativa e saudável”
... por ajudar a manter mais de 60 milhões de meninas longe da escola
O aquecimento global traz outras variáveis (ver quadro à pág. 45). Segundo os cientistas, o acréscimo de um grau centígrado à temperatura média mundial fará o volume de chuvas aumentar 1% – resultado da absorção de mais umidade pelo ar mais quente. Não haveria mudança no volume total de água na Terra, mas ela seria reciclada mais rapidamente, causando desarranjos na agricultura mundial. Conscientes dos efeitos negativos do consumo excessivo de água sobre a natureza, alguns países já estabeleceram leis que garantem “fluxos ambientais mínimos”. Há outras medidas recomendadas, cuja aplicação depende das várias instâncias envolvidas – desde a individual até a internacional.
Precificar adequadamente a água
São Paulo não pagava nada pelos 31 mil litros de água que retirava por segundo do Sistema Cantareira (correspondente ao trecho leste da bacia do rio Piracicaba) entre 1974 e 2006. Nesse ano, a promulgação da lei de cobrança do uso de água obrigou a cidade a desembolsar anualmente R$ 11 milhões com essa finalidade.
O dinheiro arrecadado vai para o comitê gestor da bacia do Piracicaba e é aplicado na preservação dos rios. Outras bacias, como a do Paraíba do Sul e de rios da região metropolitana de Curitiba, também cobram pela água extraída de seus leitos.
Eficiência doméstica
Medidas simples ajudam bastante na redução do consumo. Uma torneira gotejando desperdiça 1.380 litros por mês. Um buraco de dois milímetros no encanamento causa o vazamento de 3.200 litros por dia.
Eficiência dos fornecedores
Calcula-se que, na Grande São Paulo, vazamentos na rede da Sabesp levam embora 18% da água captada. A porcentagem corresponde a 1 bilhão de litros por dia, que, com o desconto das perdas, poderiam abastecer 3,7 milhões de consumidores.
Eficiência na agricultura
Há três caminhos principais: conseguir versões de sementes aptas a crescer em ambientes mais secos e salgados, melhorar o desempenho da irrigação e trocar culturas, plantando vegetais mais compatíveis com o atual estado da terra e do clima.
Reaproveitamento
O potencial do reaproveitamento de água é gigantesco. Para se ter uma ideia, é possível até tornar potável a água poluída por dejetos (os moradores do rico condado de Orange, no sul da Califórnia, consomem água reaproveitada de esgoto desde a década de 1970).
Aquíferos ameaçados
O Brasil possui situação privilegiada – 12% das reservas de água doce do mundo estão aqui – graças a seus imensos mananciais no subsolo.
O Aquífero Guarani, por exemplo, é o maior do mundo. Estende-se por 1,2 milhão de km2, do sul do País até o início da Bacia Amazônica, penetrando no Paraguai, Uruguai e Argentina. A espessura total do aquífero varia de 50 a 800 metros; considerando-se uma espessura média aquífera de 250 metros e porosidade efetiva de 15%, estima-se que as reservas permanentes do Guarani (água acumulada ao longo do tempo) sejam de 45.000 km³. Mas até mesmo reservas como essa estão ameaçadas pela poluição ambiental por agrotóxicos, pelo desmatamento não sustentável, pela irrigação artificial de áreas agrícolas e pelas alterações no regime pluvial devido a fatores como o aquecimento global.
Dessalinização
Essa alternativa onerosa fica viável em países com estoques de água precários. Segundo o boletim inglês Global Water Intelligence, a capacidade de dessalinização terá mais que dobrado por volta de 2015.
Comércio
Os subsídios agrícolas representam uma severa distorção comercial, mas, em certos casos, é preferível importar alimentos e bens industriais a produzi-los internamente a um custo em água proibitivo. Segundo a organização International Water Management Institute (IWMI), a demanda por irrigação seria 11% maior sem o comércio – percentual que subiria para algo entre 19% e 38% por volta de 2025.
Técnicas tradicionais
Alguns métodos usados antigamente permanecem atualíssimos: replantar árvores, em especial perto de mananciais; arrancar árvores exóticas cuja sobrevivência exija muita água; coletar água da chuva com lagos e tanques; erguer muros de pedra para conter a erosão.
Dieta vegetariana
A produção de um quilo de carne bovina exige 17.100 litros de água, enquanto um quilo de carne suína demanda 5.250 litros. Por outro lado, há 1.000 litros de “água virtual” em um quilo de legumes ou de raízes e tubérculos (ver tabela ao lado). Portanto, ser vegetariano ajuda muito na preservação da água.
Pelo menos parte dessas alternativas está sendo adotada ao redor do mundo. Mas há obstáculos ainda consideráveis a superar. A pobreza, como sublinhou Jeffrey Sachs, é um deles. A visão da água como um bem barato ou gratuito ainda está arraigada em muitos lugares, e vários agricultores relutam em rever suas culturas e métodos de plantio. Assim, forma-se um cenário de certo modo similar ao do aquecimento global: o diagnóstico existe e está bem-feito, mas as medidas para resolver o problema tardam a ser tomadas – e a demora pode nos custar muito caro. O biogeógrafo norte-americano Jared Diamond, autor de Colapso – como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso (Editora Record), afirma que as sociedades que perduraram tinham uma visão de longo prazo e mostravam flexibilidade e força de vontade para mudar seus valores quando eles não lhes serviam mais. Será que os humanos contemporâneos possuem essas características?
FONTE: http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/meio-ambiente/agua-doce-o-ouro-do-seculo-21
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