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Entrevista: JANET CLAIRA arte popular
das novelas
A receita da
autora de "Selva de Pedra": aventuras, amor, morte e suspense em doses
certas
L�cia Rito
Aos nove anos, Janet Emmer tirava 10 nas redações
que depois eram lidas para a classe. Aos 27, romântica, gostava de ouvir "Clair
de Lune", de Debussy, e assim ganharia o pseudônimo com que mais tarde iria
assinar as novelas de maior audiência da televisão brasileira: Janet Clair.
Autora de "Rosa Rebelde", "Véu de Noiva", "Irmãos Coragem" e "O Homem que Deve
Morrer", transformou-se na dona do horário das 20 horas, na Rede Globo, e de 30
milhões de telespectadores. Sua última novela, "Selva de Pedra", conseguiu 100%
de Ibope no Rio de Janeiro e em São Paulo, e esta semana sai do ar. Desta vez,
Janet também pede licença: depois de quatro anos de trabalho ininterrupto, entra
em férias; vai para o México, de onde pretende voltar com a imaginação
enriquecida, e quem sabe com um ou outro personagem com sotaque
castelhano.
Casada com o novelista Dias Gomes ("Bandeira 2"),
mãe de Guilherme, de 22 anos, Denise, de dezenove, e Alfredo, de doze, Janet,
aos 48 anos, confessa ter medo do sucesso que alcançou. Mineira de Conquista,
passou a infância em Franca, no interior de São Paulo, de onde se mudou aos
quinze anos, com a família, para a capital do Estado. Ia estudar bacteriologia.
"O sonho da minha família era me ver formada". Não agüentou: logo nas primeiras
semanas deixou os estudos e, pelas mãos da irmã Amilde ("A mais bela voz de São
Paulo", segundo concurso ganho em 1946), entrou para o rádio, onde escreveria
quarenta novelas ("Perdão, Meu Filho", a primeira). Em 1963, escreveu "O
Acusador", na TV Tupi, mas só passaria definitivamente para a televisão em 1967,
quando, depois de muita insistência, conseguiu da toda-poderosa diretora de
novelas da Globo, Gloria Magadan, a tarefa de salvar "Anastásia", uma novela
cara e sem Ibope. "Vou botar um abacaxi nas suas mãos", disse Gloria. E Janet,
depois de uma noite sem dormir, encontrou a solução: um terremoto mataria 35
personagens supérfluos, e os cinco sobreviventes levaram a novela adiante com
menos custo e mais Ibope.
VEJA - Diariamente, sua novela "Selva de
Pedra", foi vista por mais de 30 milhões de brasileiros e há um mês você
conseguiu 100% de audiência dos aparelhos ligados, fato até então inédito na
televisão. Como se sente diante disso?JANET - Os 100% de Ibope
aumentaram muito minha responsabilidade. Minha sensação é de medo. E muita
humildade. De repente, vejo meu trabalho crescer, tornar-se gigante e eu me
sinto pequena, e surpresa: pela primeira vez a repercussão de uma novela foi
inesperada para mim. "Selva de Pedra" atingiu todas as camadas sociais. Minha
empregada assiste, minhas amigas, advogados, médicos. Outro dia, fui à
inauguração do Teatro Bloch e não sabia mais o que dizer às pessoas. Até o
ex-presidente Juscelino Kubitschek mostrou que é meu fã e muito aflito chegou
para Regina Duarte e disse: "Minha filha, não agüento mais ver você sofrendo
naquela casa. Quando é que isso vai terminar?" Quer dizer, é uma coisa que me
chocou muito. Foi meu maior sucesso até agora.
VEJA - Qual é o
segredo?JANET - Os ingredientes necessários são amor, aventuras,
morte e suspense. Mas não se pode abusar deles. Sei até onde o público suporta
uma emoção e é essa medida exata que tem me ajudado. Uma boa novela é justamente
aquela bem dosada. Não gosto de cenas longas. Também não se pode abusar da
dinâmica. Você joga um impacto na história, mas até onde ele pode ser explorado?
Não mais do que em três capítulos. O drama tem que ser entremeado com o riso.
Nunca chocar sem na cena seguinte dar uma oportunidade para o público
respirar.
VEJA - Suas novelas mantêm resquícios dos
antigos folhetins?JANET - Misturo romance com aventura numa
linguagem moderna. Não existe mais nenhum resquício do antigo folhetim. O
dramalhão gratuito já foi abolido há muito tempo.
VEJA - Certa vez você disse que não fazia
novelas para os ricos porque se considerava do povo, e a opinião do trabalhador
sobre suas novelas era mais importante que a do intelectual. Você se considera
realmente uma escritora popular?JANET - Claro que me considero e
tenho muito orgulho de ser tão popular. A opinião dos intelectuais me assusta um
pouco. Eles exigem demais da gente. E as coisas podem ser muito simples. Acho
que aí está todo o segredo do sucesso. Ser simples e ter humildade de reconhecer
seus defeitos.
VEJA - Você disse também que não está
preocupada em abordar os grandes temas sociais em suas novelas e que seus
ingredientes são o amor e o romance. Por quê? Não é muito cômodo poder falar
para milhões de pessoas e só mostrar o lado positivo da
vida?JANET - Isto é injusto. Eu não mostro só o lado positivo,
nem minhas novelas são feitas só de leveza e felicidade. Acho que tenho abordado
temas bem mais arrojados. O que disse é que misturo romance e aventura, para que
o público goste e tenha um bom espetáculo. Disse também que não me preocupo em
abordar "só" temas sociais. Acho que ficaria uma novela chata de se ver. Como já
afirmei, é preciso saber misturar os ingredientes.
VEJA - Qual é na verdade a função de um
novelista? Apenas contar uma história ou de alguma maneira contribuir para
despertar a consciência do público para os problemas que o
cercam?JANET - Antigamente eu me sentia na obrigação de apenas
contar uma história. Hoje a responsabilidade aumentou. E tenho receio de perder
um pouco da minha antiga simplicidade. O público está exigindo cada vez mais.
Novelas são analisadas como grandes obras literárias pelos críticos. Mas acho
que estamos no caminho certo. Não perder a simplicidade... É dizer sempre alguma
coisa a mais.
VEJA - Quanto tempo leva para escrever
uma novela? Qual é seu esquema de trabalho?JANET - Levo o tempo
de duração da novela. O autor tem de ter um mês de capítulos escritos na frente
dos que estão no ar. Uma novela tem a duração de oito a nove meses e cada semana
escrevo seis capítulos. Levo de três a quatro dias para fazer um bloco de seis.
No resto da semana descanso, mas enquanto descanso penso, crio situações na
mente, para quando entrar na máquina escrever com mais facilidade. Quanto ao
esquema de trabalho é simples. Apresento a temática da novela à direção da
Globo, discuto com eles, acato opiniões e, quando está tudo definido, escrevo a
sinopse que é apresentada como um produto acabado. Junto com ela já estão
especificados os personagens, os cenários e os locais, e os atores são
escolhidos de comum acordo com a direção.
VEJA - De onde vem a inspiração para suas
novelas?JANET - Da vida, dos jornais, dos dramas que as pessoas
contam. A história de Cristiano tirei de uma notícia de um rapaz que tocava
bumbo numa praça, no interior de Pernambuco. Ele foi ridicularizado por um outro
rapaz e de noite foi tomar satisfações e o matou. A história surgiu daí e só
então é que notamos que a temática era semelhante à "Tragédia Americana" (do
escritor Theodore Dreiser), apesar da história da novela em si não ter nada a
ver com o romance.
VEJA - O Ibope é realmente termômetro de
um novelista?JANET - Há muito exagero em relação ao papel
tirânico desempenhado pelo Ibope. Sendo a telenovela uma forma de arte popular,
evidentemente o que conta é a reação do grande público. E ela me influencia, é
claro. Mas não ao ponto que se supõe. Muita gente imagina que vivemos
diariamente consultando o Ibope antes de escrever um capítulo. Mas confesso que
às vezes passo meses sem saber a quantas anda o Ibope da minha novela, porque
nunca fui à televisão para consultá-lo. Mas talvez eu seja privilegiada porque
minhas novelas nunca deram menos de 50%. Se acontecesse isso talvez eu sentisse
mais sua influência. Inclusive a própria direção da Globo não me avisa mais
quando o Ibope sobe muito. No dia em que deu 100% eles ligaram para mim. Agora
já não dão mais importância.
VEJA - As novelas de um modo geral
evoluíram?JANET - Claro que evoluíram. A telenovela, hoje, pouco
tem a ver com as de cinco anos atrás, que eram lineares, desenvolviam-se em
torno de uma história só - mais precisamente, do herói e da heroína, os donos de
todas as virtudes. O maniqueísmo, a divisão dos personagens em bons e maus, era
uma característica e as histórias, de um modo geral, abordavam problemas que
pouco têm a ver com o mundo de hoje. Atualmente, no que diz respeito à forma, a
telenovela se aproxima mais do romance moderno. A ação não se desenvolve
unicamente em torno de uma história, mas de várias e de uma complexidade às
vezes muito grande. Por outro lado, todos os personagens, positivos ou
negativos, passaram a ter qualidades e defeitos como todo mundo. A construção
dos personagens ganhou profundidade, procurando se evidenciar o caráter
contraditório da criatura humana. É claro que as novelas poderão ser ainda
melhores, como tudo poderá ser melhor na arte ou na vida. E para isso acontecer
é só dar a todos, atores, autores e técnicos, melhores condições de trabalho.
Para isso a Globo já está construindo estúdios novos, que contribuirão em muito
para melhorar a produção das novelas.
VEJA - O autor é um mero escritor e o
resto fica por conta do diretor ou é necessário que haja uma afinidade entre
ambos?JANET - O autor dificilmente pode deixar de envolver-se com
problemas que teoricamente deveriam ficar a cargo da direção e da produção. É
fácil explicar: a telenovela é uma obra aberta e inacabada. O diretor só tem
conhecimento dos capítulos que está gravando. A visão do autor vai um pouco mais
adiante. Assim, o diálogo autor-diretor precisa ser freqüente. Deve haver, não
digo afinidade, mas compreensão perfeita de propósitos. O diretor deve estar
inteiramente identificado com as intenções do autor.
VEJA - A propósito, quais os
melhores novelistas brasileiros?JANET - Dias Gomes, Walter
Negrão, Vicente Sesso e Ivani Ribeiro. Porque eles entendem do metiê.
VEJA - O nível das novelas brasileiras é
o melhor do mundo?JANET - É, e respondo com a maior
tranqüilidade. E não sou eu que digo. São os próprios diretores de emissoras de
todo o mundo. É que o salto qualitativo aqui verificado não ocorreu em nenhum
outro país, infelizmente. Na América do Norte e nos demais países da América
Latina, a telenovela ainda continua naquele estágio de melodrama lacrimoso e
primário. Conheço algumas, e acho-as da pior qualidade - quer a americana
"Caldeira do Diabo", quer "Simplesmente Maria", que era argentina, ou a cubana
"O Direito de Nascer". Todas eram do mesmo nível das antigas novelas
radiofônicas que hoje o público brasileiro dificilmente aceitaria. E prova disso
é o sucesso que nossas novelas estão fazendo lá fora. Na Argentina, México e
Peru estão sendo exibidas "Minha Doce Namorada", de Vicente Sesso; "Véu de
Noiva" e "Irmãos Coragem" minhas; "Assim na Terra como no Céu", do Dias Gomes; e
recentemente "Nino, o Italianinho", do Geraldo Vietri, ganhou até
prêmio.
VEJA - Qual a importância cultural das
novelas?JANET - Elas são, sem dúvida, o mais poderoso veículo de
cultura de massas. E, se você quiser saber se elas despertam a atenção do
público para os problemas sociais, basta ler as cartas que recebemos ou
simplesmente escutar as conversas de rua, onde esses problemas, quando
levantados, são debatidos, como coisa acontecida.
VEJA - Dizem que durante quatro anos você
não se afastou da televisão só para não deixar o horário das 20 horas, que
sempre foi sinônimo de sucesso. E agora? Vão poder substitui-la com
facilidade?JANET - Não existe mistério algum. Simplesmente nunca
outro autor escreveu para este horário na TV Globo, mas é lógico que tenho ciúme
do horário, acho natural. Acredito que Walter Negrão vá fazer o mesmo sucesso
com "Cavalo de Aço". Ou mais até.
VEJA - Com qual das suas novelas você se
identificou mais? E qual foi o personagem que mais a
satisfez?JANET - Minha novela preferida é "Irmãos Coragem", uma
novela aberta, diferente da "Selva", que é cheia de conflitos. Quanto ao
personagem, minha maior criação foi João Coragem e sei que nunca mais vou fazer
outro igual a ele. É o mais idealista de todos, o mais arrojado.
VEJA - Qual o envolvimento que você tem
com seus personagens? Chega a amá-los ou não se interessa mais por eles depois
que escreveu?JANET - Passo a viver o problema de cada um deles.
Amo a todos e sinto falta quanto eles vão embora. Simone, por exemplo, tem muito
de mim na sua simplicidade. A única coisa que ela queria era amar. É um
personagem extremamente humano.
VEJA - Dizem que "Cavalo de Aço" seria a
volta de João Coragem, assim como Odorico, a de Tucão. Por que a repetição de
temas?JANET - A afirmação é leviana, pois até agora ninguém
conhece sequer um capítulo dessas novelas. Quanto a "O Bem-Amado", que eu
conheço bem, devo dizer que não vejo qualquer semelhança do seu personagem
central com o Tucão de "Bandeira 2". A não ser que ambos são interpretados pelo
mesmo ator, Paulo Gracindo. E, pelo que conheço de "Cavalo de Aço", o herói da
história não tem nada a ver com João Coragem. Ao contrário, será mais uma
criação de Tarcísio Meira.
VEJA - Em 1967, na novela "Sangue e
Areia", você mudou a história porque o público não se conformava em ver o herói
trair a esposa com a amante. Por quê?JANET - Em "Sangue e Areia"
o público ainda estava habituado aos antigos novelões em que herói e heroína
deviam ser perfeitos, quadradões. Garanto que hoje eu não teria que mudar a
história. A vida mudou muito daquela época para cá.
VEJA - Até que ponto você se influencia
pela opinião do público? Recebe muitas cartas?JANET - Recebo
muitas cartas mas geralmente não me influenciam. A não ser que seja uma opinião
geral, unânime. Mas as opiniões divergem muito sobre cada um dos personagens.
Não se pode ter uma média geral.
VEJA - Como você testa o sucesso de seus
personagens?JANET - Geralmente não pergunto. As opiniões vêm até
mim, favoráveis ou não. Nas lojas e no cabeleireiro é onde falam mais sobre a
novela. Mas, se tenho um tipo criado e confio nele, vou até o fim mesmo
contrariando algumas opiniões. É só uma questão de tempo. Acabam aceitando e
chorando por ele. Como foi o caso de Miro, em "Selva de Pedra". No início era
odiado, depois todo mundo ficou com pena porque morreu.
VEJA - Nesses anos todos em que
passou escrevendo novelas, qual foi o caso mais engraçado que aconteceu com
você?JANET - O mais engraçado foi a coincidência quando "Irmãos
Coragem" começou. Fui procurada por um dos irmãos Coragem, que de fato existiam.
Quando inventei esse nome jamais poderia imaginar que houvesse alguém chamado
assim. Mas a família verdadeira era muito diferente da da novela. Foi incrível,
porque veio o irmão mais velho, Wilson Coragem, um advogado do interior de
Minas, muito bem educado, querendo saber se eu iria contar a história da família
dele. Estava preocupado porque tinha dois irmãos, um chamado Luís, outro João,
este último muito briguento. A novela ainda não tinha estreado, só estavam
fazendo as chamadas. Mostrei-lhe os dez primeiros capítulos e, como era tudo
totalmente diferente, ele ficou meu amigo até hoje.
VEJA - Na sua opinião qual foi a melhor
novela já feita até hoje na televisão brasileira?JANET -
"Bandeira 2", do Dias.
VEJA - É verdade que Dias Gomes é seu
crítico mais severo, que refreia sua tendência de dramatizar demais as
coisas?JANET - É verdade. Ele é severo até com sua própria obra.
Também é verdade que ele já refreou muito minha tendência para dramatizar as
coisas. Hoje em dia, entretanto, já não estou precisando de freio. Acho que
evoluí um pouco e devo isso a ele. Mas somos muito diferentes. O Dias é
realista, objetivo, não fantasia. Eu apenas procuro fazer as coisas dentro de
uma realidade, mas uma realidade fantasiosa, entende? O Dias, por exemplo,
jamais faria o que fiz com Simone, prendê-la numa casa através de Fernanda. Ele
descobriria outra saída, dentro da realidade. Já eu, levei o suspense a tal
ponto, num tal clima de tensão, que o público aceitou tranqüilamente a
situação.
VEJA - Mas você não acha que agindo assim
está contribuindo para o público se distanciar cada vez mais da
realidade?JANET - Não, em absoluto. Minhas histórias só são
benéficas, porque procuro sempre no final dar uma lição de moral, transmitir
algo importante.
VEJA - Você assiste diariamente à sua
novela, vibra com ela?JANET - Assisto a todos os capítulos e na
maioria das vezes me entusiasmo mesmo já sabendo o que vai acontecer. Sou
empolgada com tudo o que faço.
VEJA - Depois de quatro anos
ininterruptos escrevendo novelas você resolveu, enfim, tirar férias. Não vai
sentir falta?JANET - Vou descansar, viajar, renovar idéias. Já me
acostumei com o trabalho e não poderia viver sem criar alguma coisa. Eu escrevo
com amor, gosto do que faço. Para mim, escrever é sobreviver. Já é vício de
imaginação, e, mesmo descansando, a mente não pára de inventar histórias. Acho
que a novela para mim de fato se tornou um vício. O único, graças a
Deus.
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